Guimarães Rosa tem uns troços inusitados, dos mais avançados pra qualquer literatura moderna. Um dos seus mais avant é Meu tio Iauaretê, conto no qual a língua do dominador – o branco implantador de fazenda de gado – vai gradativamente sendo comida pela língua do suposto dominado, tupi, isso conforme a maleita avança no corpo do narrador, um bugre onçeiro contratado pra matar as bichas antes que as reses cheguem. A onça é mais sua parenta, mais ser bicho de sua espécie que o branco. Ou seja, a cumplicidade com a bicha é maior do que com o contratante.
Grande Sertão: Veredas é um calhamaço sem divisão, contado num sopro, de cabo a rabo, pelo Riobaldo já velho, com família constituída, apaziguado das guerras, para esclarecer como e por que vendeu sua alma ao Diabo. É uma versão cabocla da lenda do Fausto medieval. Talvez remeta mais à versão realmente demoníaca do Marlowe, visto que no Grande Sertão a paixão é homossexual – até Riobaldo descobrir, no final da história, que Diadorim era mulher. Ao longo da história, Riobaldo refere-se ao proibitivo desejo/afeto/amizade entre os dois como uma apaixonada maldição.
Marlowe, sabe-se, era uma bicha barra-pesada, que matou em defesa de seus amantes e colegas de copo. Raymond Chandler o homenageia, nomeando-o seu principal personagem. O Marlowe do Chandler só não é bicha, mas, de resto, é tão sofisticado, mundano e apaixonado pelo caos da vida quanto o elizabetano.
Acerca da inventividade e sofisticação construtiva do Grande Sertão a remissão, creio, é mais pro segundo Fausto do Goethe, escrito aos 70 anos, cerca de 20 anos após o primeiro, motivado pela paixão por uma mulher 40 anosmais jovem. O primeiro Fausto goetheano é voltado essencialmente pro teatro. O segundo é estritamente cerebral, lembra os diálogos barrocos, qual as constantes indagações de Riobaldo sobre a natureza humana e os mistérios que a cercam.
Paradoxalmente, Guimarães introduz as mais de 500 páginas do Grande Sertão com uma das formas literárias mais sucintas: o hai kai. Ei-lo:
O diabo na rua
no meio
do redemoinho
Este hai kai se estrutura na repetição fonêmica onomatopeica pra dar a ideia do redominho – rua/re, ia/ua/eio/oi – que sugere as constantes reviravoltas construtivas do romance, num vai-e-vem constante de jogos e significados ameaçadores. Lendas populares atribuem os redemoinhos ao Diabo. Na roça, ouvia os caboclos dizerem que se olhasse o redemoinho entre as partes de uma tesoura aberta ou pelo meio das pernas – com a cabeça abaixada para trás – veria o Cão no meio do redemoinho. Infelizmente, por mais que tenha tentado, nunca consegui vê-lo. Também há repetição semântica no hai kai: diabo/(re)demoinho, remetendo ao jargão caboclo no diminutivo "demoinho". Lá pela metade, ele cita o hai-kai com outra versão:
O diabo na rua
no meio
do redemundo Segue pedaço do Meu tio..., do bugre que caça a onça para ser ela e, por fim, se vê transformado em caça dela.
Meu tio Iauaretê
Eh, aí eu levantei, ia agarrar Maria Quirineia na Goela. Mas ela que falou: – “Ói: sua mãe deve de ter sido muito bonita, boazinha muito boa, será?” Aquela mulher Maria Quirineia muito boa, bonita, gosto dela muito, me alembro. Falei que todo o mundo tinha morrido comido de onça, que ela carecia de ir s’embora de mudada, naquela mesma hora, ir já, ir já, logo, mesmo... Pra qualquer outro lugar, carecia de ir. Maria Quirineia pegou medo enorme, montão, disse que não podia ir, por conta do marido doido. Eu falei: eu ajudava, levava. Levar até na Vereda da Conceição, lá ela tinha pessoas conhecidas. Eh, fui junto. Marido dela doido nem deu trabalho, quage. Eu falava: – “Vamos passear, seo Nhô Suruveio, mais adiante?” Ele arrespondia: – “A’pois, vamos, vamos, vamos...” Vereda cheia, tempo de chuva, isso que deu mais trabalho. Mas a gente chegou lá, Maria Quirineia falou despedida: – “Mecê homem bom, homem corajoso, homem bonito. Mas mecê gosta de mulher não...” Aí, que eu falei: – “Gosto mesmo não. Eu – eu tenho unha grande...” Ela riu, riu, riu, eu voltei sozinho, beiradeando essas veredas todas.
Uê, uê, rodeei volta, despois, cacei jeito, por detrás dos brejos: queria ver veredeiro seo Rauremiro não. Eu tava com fome, mas queria de –comer dele não – homem muito soberbo. Comi araticum e fava doce, em beira de um cerrado eu descansei. Uma hora, deu aquele frio, frio, aquele, torceu minha perna... Eh, despois, não sei, não: acordei – eu tava na casa do veredeiro, era de manhã cedinho. Eu tava em barro de sangue, unhas todas vermelhas de sangue. Veredeiro tava mordido morto, mulher do veredeiro, as filhas, menino pequeno... Eh, juca-jucá, atiê, atiuca! Aí eu fiquei com dó, fiquei com raiva. Hum, nhem? Cê fala que eu matei? Mordi mas matei não... Não quero ser preso... Tinha sangue deles em minha boca, cara minha. Hum, saí, andei sozim p’los matos, fora de sentido, influição de subir em árvore, eh, mato é muito grande... Que eu andei, que eu andei, sei quanto tempo foi não. Mas quando que eu fiquei bom de mim outra vez, tava nu de todo, morrendo de fome. Sujo de tudo, de terra, com a boca amargosa, atiê, amargoso feito casca de peroba... Eu tava deitado no alecrinzinho, no lugar. Maria-Maria chegou lá perto de mim...
Mecê tá ouvindo, nhem? Tá aperceiando... Eu sou onça, não falei? Axi. Não falei – eu viro onça? Onça grande, tubixaba. Ói unha minha: mecê olha – unhão preto, unha dura... Cê vem, me cheira: tenho catinga de onça? Preto Tiodoro falou eu tenho, ei, ei... Todo dia eu lavo corpo no poço... Mas mecê pode dormir, hum, hum, vai ficar esperando camarada não. Mecê tá doente, carece de deitar no jirau. Onça vem cá não, cê pode guardar revólver...
Aaã! Mecê já matou gente com ele? Matou, a’pois, matou? Por quê que não falou logo? Ã-hã, matou, mesmo. Matou quantos? Matou muito? Hã-hã, mecê homem valente, meu amigo... Eh, vamos beber cachaça, até a língua da gente picar de areia... Tou imaginando coisa, boa, bonita: a gente vamos matar camarada, ’manhã? A gente mata camarada, camarada ruim, presta não, deixou cavalo fugir p’los matos... Vamos matar?! Uh, uh, atimbora, fica quieto no lugar! Mecê tá muito sopitado... Ói: mecê não viu Maria-Maria, ah, pois não viu. Carece de ver. Daqui a pouco ela vem, se eu quero ela vem, vem munguitar mecê...
Nhem? A’bom, a’pois... Trastanto que eu tava lá no alecrinzinho com ela, cê devia de ver. Maria-Maria é careteira, raspa o chão com a mão, pula de lado, pulo frouxo de onça, bonito, bonito. Ela ouriça o fio da espinha, incha o rabo, abre a boca e fecha, ligeiro, feito gente com sono... Feito mecê, eh, eh... Que anda, que anda, balançando, vagarosa, tem medo de nada, cada anca levantando, aquele pelo lustroso, ela vem sisuda, mais bonita de todas, cheia de cerimônia... Ela rosnava baixinho pra mim, queria vir comigo pegar o preto Tiodoro. Aí, me deu aquele frio, aquele friiio, a cãimbra toda... Eh, eu sou magro, travesso em qualquer parte, o preto era meio gordo... Eu vim andando, mão no chão... Preto Tiodoro com os olhos doidos de medo, ih, olho enorme de ver... Ô urro!...
Mecê gostou, ã? Preto prestava não, ô, ô, ô... Ói: mecê presta, cê é meu amigo... Ói: deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um tiquinho em mecê, tiquinho só, encostar minha mão...
Ei, ei, que é que mecê tá fazendo?
Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda... Mexo não, tou quieto, quieto... Ói: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à-toa... Ói o frio... Mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! ê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa do preto? Matei preto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Cacuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...
Hé... Aar-rrâ... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã...Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê...
(da qui por diante a linguagem começa a transitar, até que no fim da narrativa o português some de vez...)
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João Guimarães Rosa – Estas estórias. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1969. 1ª edição. Capa de Poty. Encadernação original brochura. 231 pp. Obra póstuma. Trata-se de um livro de contos, organizado por Paulo Rónai, e onde figura o conto Meu Tio o Iauaretê.
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