domingo, 18 de julho de 2010

A PERDA DA IMAGEM OU ATRAVÉS DA SIERRA DE GREDOS

Luis Horácio



“Evite a palavra ‘verdade”’, ditou ela ao autor, “substitua-a por ‘abrangente’”.



A mulher dita sua história ao escritor e faz a advertência que estimulará a criação, que abrirá caminho a uma subjetividade incomum.



A perda da imagem ou através da sierra de Gredos -575 páginas é um híbrido, novela e libelo contra a fragmentação, contra o ritmo alucinado capitalista que nos subjuga e desestimula a reflexão. Handke não é refém da trama, da história, não cria sob o conforto maniqueísta, dessa forma oxigena a literatura e foge da concepção ultrapassada de Literatura, a que exige enredo, começo, meio e fim.



Um livro na contramão das tendências literárias e culturais. Adorno, provavelmente, aplaudiria. Ao incentivar a discussão acerca do poder da imaginação e da verdade dentro da obra literária, faz lembrar de William James em O pragmatismo, 1981 - ao dizer que o verdadeiro é somente um expediente de nossa maneira de pensar . Ao falarmos de imaginação cabe acrescentar pitadas de emoção e pensamento crítico.



O autor: o austríaco Peter Handke que não prima pela coerência ao longo de sua obra literária, apesar da exaustiva repetição, e coerência e repetição estão separadas por um fio frágil ao excesso, a exigir exame minucioso a fim de evitar que a confusão se estabeleça. Já se disse várias vezes que Peter Handke escreve e reescreve o mesmo livro. Não é bem isso, mas é quase isso.Em Don Juan narrado por ele mesmo (título anterior também lançado pela editora Estação Liberdade), o personagem título aparece no jardim de um hotel e conta ao caseiro a história dos seus últimos sete dias, vividos em sete países e com sete mulheres diferentes.



Nesse A perda da imagem uma executiva, “a princesa das finanças” percorre a Sierra de Gredos, na Espanha, na narrativa uma Espanha irreal sob condições beirando o surreal; em busca de um escritor a quem contará sua história, futuro redator de sua biografia. Em Don Juan a atenção não está voltada para os fatos e sim para o tempo que eles ocupam, em A perda da imagem o importante é a cena,é o que se vê, é “a duração”, acompanhada sempre da melancolia das lembranças.



A mulher representa o poder, poder do dinheiro, do capitalismo e da tecnologia. Ela sai da sua cidade portuária do noroeste da Europa e chega a Espanha onde encontra o escritor que vive no povoado da Mancha.



Durante a travessia da Sierra de Gredos “a princesa das finanças” é levada a uma reflexão que a transformará, a executiva, agora fora do seu mundo de números, encontrará apenas pessoas que não têm dinheiro..Num determinado momento ocorrerá a perda de imagens, mas é justamente a consciência dessa perda de imagens que permitirá sua renovação.



Há um desejo de permanecer, de imortalidade.



A perda da imagem se aproxima da novela dostoiévskiana , do aspecto mais corriqueiro da obra do russo onde não se percebe aprofundamento psicológico, embora a tensão seja permanente e sutil. O texto apesar de ideologizado do início ao fim, não carrega o ranço panfletário e consegue ser lírico, consistente, a ausência de humor também merece registro, percebemos sua aversão à mimesis realista, quando esta não representa a realidade, mas dá a luz uma realidade lingüística desvinculada da real. A perda da imagem ou através da sierra de Gredos, não se alinha à literatura b.o. -boletim de ocorrência- que, infelizmente, o excesso de realismo está a produzir. E o leitor, evidentemente, a consumir.



Deixa a suspeita de uma leve inspiração em Dom Quixote, não que esta esteja restrita a região espanhola onde a história é ambientada, quem leu e, infelizmente são poucos, conhece o começo de Dom Quixote. En un lugar de la Mancha , de cuyo nombre no quiero acordarme, no há mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza em astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.



Assim como Quixote o tema de A perda da imagem também é a literatura, em ambos pode ser entendida como sinônimo de liberdade.



Martin Fierro/ Contos Gauchescos, Dom Quixote/ A perda da imagem... Influência ou imitação? Quem sabe, crise criativa? Em ambos os casos, influência apenas. Belas influências, mas convém permanecer alerta, derivar para as outras duas possibilidades e questão de um adjetivo, uma exclamação. Se tanto.



Cervantes com Quixote e Handke com A perda da imagem apresentam personagens que se atrevem, se arriscam para buscar sentido às suas vidas, mesmo que essas atitudes permitam suspeitar de simplória idealização. A “princesa das finanças” de repente é invadida por esse idealismo, talvez por isso, por não ser algo de seu, não seja caricatural como são os idealistas, Policarpo Quaresma e Dom Quixote.



A travessia da sierra de Gredos, lugar pedregoso e serpenteante, implica na vivência de uma gama de episódios a trazer coadjuvantes estranhíssimos à executiva em busca incansável de um lugar que lhe permita imagens suaves. Conhece a Lei fundamental da imagem:criar paz.



A perda da imagem...permite vislumbrar do alto da serra de alienação onde os meios de comunicação conduzem o ser humano comprometido com a boçalidade, um precipício enorme que o aguarda. O homem vazio não flutua, as perdas pesam.



“E a coisa de que eles mais sentiriam falta no mundo, nesse mundo, uma falta dolorosa, seria a contemplação. E justamente para reconquistar a contemplação é que teriam vindo para cá, para este - a palavra assentava como uma luva - “Istmo do Entretempo”, Manso Remanso ou Barreira Funda, Mojada Honda, não por causa desta ou daquela imagem, mas somente para contemplar, pela contemplação que aparava arestas, justificava a existência, ‘mondava’, dignificava, renovava e unia. ‘Nascido para mirar, para olhar bem lá no fundo... é assim que eu quero o mundo’, é assim que surge o mundo, é assim que ele se torna mundo para mim, ou algo assim.”



Um dos pressupostos da arte, qualquer forma de arte, é o de lutar e defender a liberdade e se em Quixote essa liberdade é defendida por um suposto louco,e em A perda da imagem se dá na subversão de uma executiva do mundo das finanças; nada mais sintomático a denunciar a pasmaceira, a paralisia em que o homem urbano vive, dócil a acreditar que quanto mais eletrodomésticos, quanto mais aparelhos de última geração acumular, mais livre ele será. Ledo engano, a liberdade não é da ordem dos produtos que se pode comprar, mas daqueles que se tem a obrigação de defender.



A perda da imagem ou através da sierra de Gredos - nem velocidade tampouco lentidão, no ritmo do escrever, do ler, do caminhar. É essa a identidade, a característica,da Literatura de Peter Handke. Criemos,pois, as nossas imagens. As mais abrangentes.



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