De repente, se eu ficasse desempregada, não me custaria arranjar um emprego. Logo iria trabalhar na cozinha de uma madame do Jóquei Clube. Sou nordestina da gema. Sei preparar pratos regionais, e outras iguarias, com todo capricho e requinte. E para falar a verdade, botando o preconceito de lado, o emprego doméstico é um bom negócio.
A classe média alta paga bem. Claro que eu vou apenas cozinhar, seria o meu ofício. Copeira, passadeira, arrumadeira, seria mão de obra para outras pessoas. Eu entendo muito bem da divisão do trabalho. A minha tarefa seria apenas dirigir um fogão. Já pensou, eu num belo uniforme, com o brasão da patroa, toca, avental. Linda. Uma tentação para o dono da casa. Seria como eles dizem, com seu eufemismo politicamente correto; uma secretária.
Tentaria o máximo possível resguardar a minha privacidade. Teria meu quarto, minha cama, meu banheiro, minha televisão. Espaço pequeno, quase uma cela. Mas tudo bem. Eu seria uma espécie de monja. Trataria o patrão e a patroa, com todo o respeito. E esperaria reciprocidade.
Vejamos algumas vantagens de ser empregada doméstica: ter onde dormir, nesses tempos em que as criaturas de Deus dormem debaixo dos viadutos, em cima dos jornais; café, almoço, janta, merenda, não pagar luz, nem água. E, no final do mês, receber o seu salário líquido, já descontado os encargos sociais.
Cozinhar não é tarefa para qualquer um. Não é só botar uma panela de feijão, com água e sal, no fogo, fritar um ovo, assar um bife. Muita gente desvalida sai do interior, não sabe fazer nada, não acerta um molho. Não tem gosto para apreciar um tempero, tem a mão pesada para salgar. Vive de mau humor, quebra prato, copo, queima o arroz, um fiasco. São pessoas que desclassificam a confraria dos cozinheiros. Pensam que só porque são mulheres sabem cozinhar, como se cozinhar fosse ter filhos. Engano. Os melhores cozinheiros são homens, finos cavalheiros. E como a culinária está cada vez mais sofisticada, já tem até Faculdades para formar bons cozinheiros. E não é fácil encontrar uma vaga.
Mas, como eu estava dizendo, se eu ficar desempregada, logo estarei trabalhando. Pois não tenho preconceito em descer de minha posição de recepcionista. O que é uma recepcionista? Não é também uma criada, dentro de seu uniforme. Eu já fui aeromoça. Já estive lá em cima, no alto. E o que é uma aeromoça senão uma criatura que trabalha na cozinha de um avião, e serve aos passageiros, com as mãos delicadas; um sorriso de seja bem vindo a bordo. E ainda por cima a maioria fala inglês. Eu também sei falar inglês. E não é porque vou trabalhar em uma cozinha que uma madame vai me rebaixar. Todo trabalho é dignificante. Mesmo sendo uma relação de servo e senhor.
Existem muitas cozinheiras que se deram bem com os patrões. Mas isto é outra literatura, segredo de família. Promiscuidade. Estou aqui para reconhecer que apesar da falta de emprego na praça, é uma boa saída trabalhar como empregada doméstica, seja em casa de branco, de pardo ou de negro, nesse país. Garanto que uma cozinheira competente não vai passar necessidade.
A cozinha é um grande laboratório. Na arquitetura das casas modernas, ganhou o lugar da frente. A culinária é uma arte maior, com ela começamos o nosso dia, sem ela não há festa, nem confraternização. O mundo está repleto de revistas tratando da saúde e do alimento, receitas de dar água na boca. O bom cozinheiro tem que possuir precisão no corte da carne, para não estragar as fibras, atenção na escolha das verduras, conhecer o segredo do cru e do cozido, ter perícia e delicadeza para tratar os temperos, muito coragem para cortar um pescoço de uma galinha, caso seja preciso, ou embebedar e sangrar um peru para o Natal.
Eu estou pronta para isso, casa seja necessário. Pois a vida é cruel. Bom. Ainda bem que meu emprego, por enquanto, está garantido. Mas se eu tiver, de encarar profissionalmente uma cozinha, qualquer dia desses, vou encarar com tranqüilidade.
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