Adílio, 33 anos, uma detenção por furto, estava tentando
mudar de vida e não sabia que iria ocupar o noticiário do dia quando resolveu
pular o muro da Estação de Madureira, como fazem muitos, para não pagar a
passagem. Apressado, não viu uma composição que o atropelou. O corpo ficou na
via férrea, atrapalhando o tráfego – como diz o verso do poeta. Era tardinha do
intenso movimento da volta pra casa. Os bombeiros demoram muito mais para
aparecer no subúrbio. A empresa que administra os trens deu autorização para
que o maquinista passasse por cima do corpo de Adílio para não haver atrasos
piores do que já tinha sido causado pelo atropelamento. Por força desses
hábitos modernos de filmagens com celulares, as imagens foram ao ar e “virulizaram”
nas redes sociais, não podendo ser ignoradas na televisão em cadeia nacional.
Os estômagos embrulharam no jantar daquela noite, nos lares
da zona sul, onde o trânsito para por atropelamento de cachorro. A empresa
soltou uma nota em que garantia que o espaço entre o trilho e a composição
permitia ao cadáver não ser incomodado. A desculpa era muito cínica para ser
engolida após o jantar. O secretário de Transportes deu entrevista, indignado,
numa atuação convincente frente às câmaras (embora no dia seguinte dissesse que
a punição era da agência reguladora – essa excrecência que nada regulam – e que
o governo era interessado no melhor serviço prestado, etc. e tal, conversa pra
boi dormir como convém aos governantes).
Enquanto o vídeo feito por acaso circulava, mostrando o
absurdo de um segundo atropelamento consentido, um jornal popular fazia uma
enquete sobre o acontecimento. 60% dos populares entrevistados aprovavam a
atitude da empresa para liberar o tráfego. Às favas com os escrúpulos, numa
vida apressada, dos que querem chegar em casa para descansar um pouco e voltar
ao batente. Dos que assistem a justiceiros em programas de televisão, pedindo o
sangue de quem tem passagem pela polícia e está solto. Justiceiros que, travestidos
de moral e ética duvidosa, amalgamam o pão do ódio de classe contra os pobres e
pretos da periferia. Muitos concordam com eles para escapar da vala comum dos
bandidos. Os homens da TV trabalham a perigosa separação entre homens de bem e
do mal. Criam a permissão para a polícia matar sem necessário julgamento.
Talvez o próprio Adílio estivesse nestes 60 % que aprovaram o atropelamento, se
a vítima não tivesse sido ele. O jornal conclui que 39 % dos entrevistados não “concordavam com a atitude de passar por
cima dele com um trem, mesmo com altura para não atingi-lo, por ser
desrespeitoso”. A mim parece que desrespeitosa foi essa pergunta absurda.
E os trabalhos sociais concluem que temos uma população
conservadora. Nada surpreende se entendermos que as concessões de TV estão
entregues a apresentadores sensacionalistas, tresloucados e aprovando o
comportamento absurdo de uma polícia fascista; a pastores que tiram os demônios
das pessoas e vendem vaga no céu tomando dízimo de um minguado salário menor
que o mínimo; de economistas liberais que atacam a distribuição de renda e
incitam a competição com um prêmio inalcançável para a grande maioria; âncoras
de noticiários tendenciosos, que tecem loas ao liberalismo e pregam uma
diminuição do Estado, ainda o único instrumento que - quando em boas mãos - consegue prover saúde, e uma mínima educação a quem não tem nada. E teriam
menos ainda com um Estado menor.
Foi por este conjunto de formadores de opinião que Adílio
foi atropelado. E sabedora de que a mídia assim age, foi que a concessionária
de trens soltou aquela nota. Acontece Adílios todo dia. Neste caso teve uma câmara
indiscreta que “virulizou” nas redes sociais. Foi essa nova realidade das redes
sociais que forçou o caso de Adílio virar notícia. Mas aconteceu semana
passada. Já não é mais notícia, a concessionária não foi punida, o Estado se
eximiu, a agência reguladora se fez de mouca. E a vida segue seu curso, como os
trens o seu percurso.
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