domingo, 9 de agosto de 2015

Morreu na via férrea atrapalhando o tráfego...

desenho: Antônio Máximo

(Edmar Oliveira)

Adílio, 33 anos, uma detenção por furto, estava tentando mudar de vida e não sabia que iria ocupar o noticiário do dia quando resolveu pular o muro da Estação de Madureira, como fazem muitos, para não pagar a passagem. Apressado, não viu uma composição que o atropelou. O corpo ficou na via férrea, atrapalhando o tráfego – como diz o verso do poeta. Era tardinha do intenso movimento da volta pra casa. Os bombeiros demoram muito mais para aparecer no subúrbio. A empresa que administra os trens deu autorização para que o maquinista passasse por cima do corpo de Adílio para não haver atrasos piores do que já tinha sido causado pelo atropelamento. Por força desses hábitos modernos de filmagens com celulares, as imagens foram ao ar e “virulizaram” nas redes sociais, não podendo ser ignoradas na televisão em cadeia nacional.

Os estômagos embrulharam no jantar daquela noite, nos lares da zona sul, onde o trânsito para por atropelamento de cachorro. A empresa soltou uma nota em que garantia que o espaço entre o trilho e a composição permitia ao cadáver não ser incomodado. A desculpa era muito cínica para ser engolida após o jantar. O secretário de Transportes deu entrevista, indignado, numa atuação convincente frente às câmaras (embora no dia seguinte dissesse que a punição era da agência reguladora – essa excrecência que nada regulam – e que o governo era interessado no melhor serviço prestado, etc. e tal, conversa pra boi dormir como convém aos governantes).

Enquanto o vídeo feito por acaso circulava, mostrando o absurdo de um segundo atropelamento consentido, um jornal popular fazia uma enquete sobre o acontecimento. 60% dos populares entrevistados aprovavam a atitude da empresa para liberar o tráfego. Às favas com os escrúpulos, numa vida apressada, dos que querem chegar em casa para descansar um pouco e voltar ao batente. Dos que assistem a justiceiros em programas de televisão, pedindo o sangue de quem tem passagem pela polícia e está solto. Justiceiros que, travestidos de moral e ética duvidosa, amalgamam o pão do ódio de classe contra os pobres e pretos da periferia. Muitos concordam com eles para escapar da vala comum dos bandidos. Os homens da TV trabalham a perigosa separação entre homens de bem e do mal. Criam a permissão para a polícia matar sem necessário julgamento. Talvez o próprio Adílio estivesse nestes 60 % que aprovaram o atropelamento, se a vítima não tivesse sido ele. O jornal conclui que 39 % dos entrevistados não “concordavam com a atitude de passar por cima dele com um trem, mesmo com altura para não atingi-lo, por ser desrespeitoso”. A mim parece que desrespeitosa foi essa pergunta absurda.

E os trabalhos sociais concluem que temos uma população conservadora. Nada surpreende se entendermos que as concessões de TV estão entregues a apresentadores sensacionalistas, tresloucados e aprovando o comportamento absurdo de uma polícia fascista; a pastores que tiram os demônios das pessoas e vendem vaga no céu tomando dízimo de um minguado salário menor que o mínimo; de economistas liberais que atacam a distribuição de renda e incitam a competição com um prêmio inalcançável para a grande maioria; âncoras de noticiários tendenciosos, que tecem loas ao liberalismo e pregam uma diminuição do Estado, ainda o único instrumento que - quando em boas mãos - consegue prover saúde, e uma mínima educação a quem não tem nada. E teriam menos ainda com um Estado menor.

Foi por este conjunto de formadores de opinião que Adílio foi atropelado. E sabedora de que a mídia assim age, foi que a concessionária de trens soltou aquela nota. Acontece Adílios todo dia. Neste caso teve uma câmara indiscreta que “virulizou” nas redes sociais. Foi essa nova realidade das redes sociais que forçou o caso de Adílio virar notícia. Mas aconteceu semana passada. Já não é mais notícia, a concessionária não foi punida, o Estado se eximiu, a agência reguladora se fez de mouca. E a vida segue seu curso, como os trens o seu percurso.   






     

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