Ronaldo Cagiano *
No balanço das leituras dos últimos tempos, em meio ao cipoal de contradições, paradoxos e obviedades que marcaram o cenário (sempre-o-mesmo) da produção literária brasileira, chamou-me a atenção a força poética e ficcional que vem das pequenas editoras, sobretudo quando os mais importantes prêmios literários do País vêm reconhecendo qualidade e vigor em autores publicados fora do eixo tradicional do mercado editorial.
Os editores dessas pequenas casas – entre as quais Confraria do Vento, Dobra Idéias, Patuá, Oito e Meio, Scriptum, Móbile –, apenas para citar alguns exemplos de quixotismo e resistência, vêm trabalhando com afinco e dignidade, sem dever favor algum ao mercado e às diatribes do círculo viciado e vicioso das grandes editoras, para publicar autores de talento e valor estético, cujas obras, inclusive, vêm desbancando pesos pesados da bibliografia nacional, como é o caso, nos últimos anos, de Suzana Montoro, Paula Fábrio, Jacques Fux, Guilherme Gontijo Flores, Everardo Norões, Gastão Cruz, Ana Luísa Escorel.
As pequenas editoras têm exercido papel fundamental ao dar vez e voz a alguns nomes, tantos deles rejeitados pelos imperdoáveis silêncio e indiferença do oligopólio editorial, este cada vez mais suscetível às relações sociais e políticas de seus editados do que verdadeiramente movidos pelo talento. Basta ver que o lixo literário vem adquirindo, de forma avassaladora, status de boa literatura no mercado.
Exemplo cabal desse nivelamento por baixo é o deboche e a fraude poética de poetas de escritores de algibeira, que ganham páginas inteiras na grande imprensa, enquanto autores verdadeiramente com tutano criativo são esmagados pela máquina apodrecida do mundo cultural e literário, onde prevalecem hegemonicamente o estrelismo, o narcisismo, a “vida literária” (feiras, patotas, igrejinhas, grupelhos, máfias, gangues, cozinhas, vitrines para todos os gostos, onde são sempre os mesmos os convidados) e não a literatura.
Exemplo deprimente e desalentador desse cenário é o ostracismo a que foi relegado o escritor brasileiro Julio César Monteiro Martins, recentemente falecido na Itália, onde vivia há mais de vinte anos como professor de literatura brasileira na Universidade de Pisa. As novas gerações, tributárias da literatura de Philip Roth, Paul Auster, Thomas Pynchon, Roberto Bolaño, Coetze, Amós Oz, Enrique Vila-Matas etc e toda a bibliografia internacional imposta goela abaixo pelo acachapante sistema editorial, ignoram solene e despudoradamente um autor como esse, que nos anos 70 e 80 pontificou no cenário editorial brasileiro, além de ter sido proprietário da editora carioca Anima, que traduziu alguns clássicos.
A negligência se generaliza não apenas no meio editorial e na monopolizada rede de livrarias (que vê literatura como negócio, mercado e lucro), mas também entre escritores e crítico, entre os quais não há o mínimo interesse em (re)conhecer o que produziu não apenas um Julio Cesar Monteiro Martins, mas esses que enchem os pulmões em entrevistas para declinarem suas influências (e afluências) e seus créditos a gurus literários estrangeiros, pretensamente alimentando uma dicção que seja absorvida pelas editoras internacionais, também desconhecem que no País há tantos escritores completamente alijados não só do mercado, mas das bibliotecas, entre os quais Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Rosário Fusco, Samuel Rawet, Dantas Motta, Ricardo Guilherme Dicke, Geraldo Maciel, José Agripino de Paula, Renato Pompeu, Ewelson Soares Pinto, Eugênia Sereno, Orides Fontela, Maura Lopes Cançado, Dora Ferreira da Silva, Jaime Rodrigues, Antonio Fraga, Lupe Cotrim, Gilka Machado, Moreira Campos etc (a lista da proscrição é grande, entre vivos e mortos) completamente relegados ao anonimato, por culpa e obra de uma cultura literária que avaliza esquemas e panelinhas, alberga o pornô-chic, respalda a modernidade vazia e despótica (porque sem humanismo), aceita a badalação como literatura e rejeitam o que é linguagem e densidade, para incensar a mediocridade, lançar holofotes na estupidez, legitimar modismos. São falsos criadores que vampirizam a vida literária, dissimulados em seus altares mercenários.
Em um artigo lúcido publicado na edição nº 816 (16/9/2014) do Observatório da Imprensa, o jornalista Alexandre Coslei enfrenta a questão do camelódromo da literatura, apontando as mazelas desse setor em que escritor e editor se rendem e se vendem cada vez mais ao mercado, num cenário em que não se importam com a qualidade, mas com as cifras e os holofotes. Ele conclui: “Na rendição do escritor às frivolidades do mercado editorial é que se dá o encontro entre Fausto e Mefistófeles, é quando a literatura perde a alma.”
A literatura morreu! Julio morreu! Viva a Literatura! Viva a verdadeira criação!
Vivas aos lúcidos e corajosos criadores, que resistem às pancadas e injustiças!
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Vivas aos lúcidos e corajosos criadores, que resistem às pancadas e injustiças!
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Ronaldo Cagiano é escritor, reside em São Paulo
enviado por Paulo José Cunha
Um comentário:
Ronaldo Cagiano é o meu quixote da literatura, um confrade feroz, um homem do bem. Um amigo há quase 30 anos, em primeiro lugar, e um escritor militante e generoso. Essa sua batalha - que é também nossa - contra o mercado que devora os bons escritores, ao alijá-los do processo de divulgação de sua literatura, faz parte de uma guerrilha cultural que tenta salvaguardar o que de melhor houver na literatura produzida no país. O enfrentamento é quase utópico, posto que a indústria da literatura (chamo indústria, porque as coisas parecem ser produzidas em série, cheias de clichês, rasteira, sem qualquer profundidade) está disseminando uma praga de escritores de nome e pouca literatura. Infelizmente. Fica aqui me abraço ao Ronaldo, de quem ando sentindo falta.
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