Saímos cedo de Teresina, eu e meu amigo Geraldo Borges, para revermos a nossa Palmeirais, que deixamos quando crianças. Hoje somos dois velhos fazendo uma viagem à infância.
Teresina encompridou e foi difícil encontrarmos a Tabuleta, bairro que se originou por ficar no limite da cidade onde a tabuleta determinava começar a Teresina. Era a derradeira periferia, com casebres de palha, que com a chegada da luz elétrica em alguns piscava a luz vermelha anunciando o cabaré com as moças debruçadas nas janelas. Imagem que só existe nas nossas lembranças. A velocidade do carro pela avenida asfaltada nos colocou na estrada de Palmeirais discutindo onde ficava a placa da tabuleta. Creio que só pode ser localizada nas nossas memórias e em lugares afetivos diferentes. Já tem bairros depois da Tabuleta. O carro andava facilmente naquela estrada de boa pavimentação. E muito rápido estávamos em Nazária, povoado distante da Teresina, que recentemente virou cidade para acomodar a reprodução dos políticos da cidade. Como os políticos crescem mais que a taxa demográfica da cidade é preciso reinventar novas cidades para acomodar o crescimento político. Desenvolvíamos essa tese sociológica quando avistamos o assobradado que servia de estacionamento para os paus-de-arara e a mercearia da parada obrigatória de nossas viagens de meninos. No mesmo lugar e tal e qual tínhamos guardado na lembrança. Naquele momento entramos no passado. Não tinha o café com bolo frito, mas o caldo de carne saboroso nos forneceu um gosto de outro tempo.
De novo na estrada e um pouco adiante paramos numa birosca que anunciava ser o povoado Caititus. A birosca não estava na memória, mas por trás dela o casarão maltratado pelo tempo me foi reconhecido como o antigo majestoso solar do Aloísio Oliveira. Aloísio já não existe e o casarão parecia sentir a sua ausência na velhice silenciosa que despregava suas janelas e enrugara o reboco, esmaecendo a pintura. Parecia uma pintura em preto e branco arrancada do passado. Aquela visão me atirou num tempo perdido.
Voltando à estrada, eu dirigindo, passei batido por um povoado que Geraldo reconheceu e pediu que eu voltasse. Retornamos e estacionamos no pátio de uma fazenda abandonada que o Geraldo dizia ser a Capumba. Apenas um cachorro vadio, tudo fechado. Uma casinhola se abre lá muito longe e um velho, com seu chapéu de couro, olha os estranhos. Geraldo lhe chama pelo nome: Laurentino. O velho anda desconfiado, mas quando reconhece o Geraldo abre o sorriso e os braços num abraço. “Moço de Deus, o que lhe traz aqui”, diz um velho ao outro. Logo estamos conversando e o mais surpreendente é que Laurentino lembra de mim: “Damar, como tu tá velho!”. E o pior é que era verdade! Eu envelhecera e ele não. Estava velho, mas da mesma idade de quando eu menino o conheci.
Passei umas férias com meu primo Maurício na fazenda de seu pai, Absalão, que era a Capumba. Uma noite fomos a uma festa noutra fazenda montados a cavalos. Como nunca tinha andado em um, Laurentino me arranjou uma mula mansa, que sabia o caminho de casa. Se me perdesse, ele dizia, ela volta. De fato, não me deu trabalho. Mas não estando acostumado aos estribos consegui duas feridas nos pés que só foram sarar em Teresina. Na beira do rio, com os pés dentro d’água, impossível. E Laurentino lembrava dessas feridas, que chamava de bicheiras, e ria muito com sua boca em poucos destes.
Foi uma prosa boa naquela manhã. Laurentino dizia que os patrões abandonaram a fazenda. E agora uma dona Suzana, lá do sul, estava comprando todas as terras para plantar eucaliptos. Perguntamos quem era a tal Suzana e o Laurentino fez um muxoxo: “sei lá, nunca ninguém viu ela”. Eu e Geraldo imaginamos ser o grupo empresarial “Suzano” que fabrica papel de eucaliptos. Parecia que uma nova forma de capitalismo estava entrando no cenário de nossas memórias para substituir aquele feudalismo do escambo exploratório, que se esgotara. As antigas fazendas quase nada produziam, lembramos: umas poucas cabeças de gado, cabras pastando no terreiro, galinhas e capotes no quintal, alguns roçados feitos de meia (parte do patrão, parte do agregado). O povoado crescia em torno na mercearia do patrão que trocava o babaçu extrativo dos agregados por querosene, sabão, vela e outros gêneros necessários num escambo em que o valor da troca era determinado pelo patrão. A exploração agora tinha trocado de mãos e de forma. Os agregados virariam peões da plantação de eucaliptos.
Com essa nova discussão sociológica pegamos a estrada procurando o povoado do Leonan, filho do Tancredo, meu tio já falecido que nomeou sua propriedade rural com o pomposo título de “Estados Unidos”.
Chegamos no Casteliano. Por certo tínhamos passado dos “Estados Unidos”, mas o tínhamos perdido. Será que os novos capitalistas tinham anexado já os “Estados Unidos”? Ironia capitalista, que só descobriríamos na viagem de volta.
Para ser publicada no blog, essa viagem será dividida em capítulos. Este é o primeiro, a seqüência estará no próximo, que não será o fim. Será uma novela, essa história?
Na foto: Damar, Laurentino e Geraldo Borges. Na outra: beira de rio Parnaiba na estrada para Palmeirais.
4 comentários:
On the road! Não vou perder o próximo capítulo, Damar!
Bjs,
Luciane
Oh...Primo!!! Vc me vez voltar ao passado e me trouxe de volta a inspiração e o gosto pela vida, pois tenho andado um pouco capiongo...Estou aguardando o próximo capítulo. Gde abraço. Ronério Ribeiro.
Vou esperar o próximo capítulo. Não são as minhas lembranças. Mas volto no tempo e revejo na memoria vários lugares e pessoas , em paisagens que passei outrora na minha Teresina e seus arredores.
piruzim, rapá, passa a bola! esperei o cruzamento...
Postar um comentário