domingo, 11 de setembro de 2011

O Jornaleiro de Gesso


Graça Vilhena

O pouco sobre a morte ouvira rapidamente e distante. Havia uma amiga na escola que sempre, no dia das mães, pintava, de uma cor triste, um coração ensinado para cultuar um amor sem descanso. Depois, aquela moça magrinha, que foi para o céu porque Deus a chamara para si. Assim era não mais viver: a cartolina pintada e a felicidade entre os anjos. Ainda não havia perdido o que pudesse morrer de verdade, por isso estar ali, naquele quarto, podendo sentir a morte em seus preparos, era, para a menina, um acontecimento sem explicação. Não podia aceitar assim a despedida de alguém que aprendera a amar. Dona Clara tão viva no último domingo, preparando as garrafas de tempero e as balas de café da última encomenda. Agora aquele olhar perdido, morre-não-morre, aquela vagueza largada e esquecida.

De súbito em calafrio correu pelo seu corpo feito bicho dentro da roupa. Não lembrava de tê-lo visto quando veio apressada. Era a primeira vez que entrava na casa sem que seu olhar curioso abraçasse o jornaleiro de gesso no corredor de entrada: uma peça de um metro de altura, muito comum nas casas antigas. Dona Clara herdara da mãe e, como o tempo se põe vagaroso sobre as coisas guardadas com cuidado, o pequeno jornaleiro permanecia imutável em seu destino. Tinha uma carinha de menino europeu e vestia uma camisa branca e um calção azul preso ao corpo por um único suspensório em diagonal. A mão em concha segurava um grito que atravessava silencioso a existência da casa. Debaixo de um dos braços os jornais, guardando notícias de um tempo não vivido. Ela queria as palavras e esperava pelo momento acreditado.

Na sala as mulheres puxavam um terço solidário. Dona Clara merecia um milagre. Era devota de Nossa Senhora. Vestia-se de branco todo ano e saía como uma nuvem boa no céu de maio, levando de casa em casa o pequeno andor da Virgem. Jamais negava ajuda a quem precisasse. Todos sabiam como fora parar em seus braços o sobrinho criado como filho. A mãe, arrenegada com filho e tudo pelo irmão de Dona Clara, entrou, um dia, corredor adentro, toda afoita:

 – Se quiser criar, crie, senão, dê pro juiz. Não posso ficar com ele, tenho vida pra fazer.

A criança quase não escapa, foi preciso promessa. São Francisco ajudou, daí o nome do menino. Dona Clara não escondia a tresmalhada origem. Mas era assim, para não acanhar, evitava-se o assunto.

A menina olhava o corredor vazio. Onde estaria ele? Uma sombra ruim escurecia os losangos do mosaico.

 – Venha rezar, minha filha. Reza de criança Deus atende mais depressa!

Parecia não ouvir a mãe. Os olhos presos, acantoados no vazio. Logo agora que ele ira falar. Ficou ali ainda um tempo, esperando forças, corpinho colado na cadeira de palhinha arrumada na sala. Saiu sem despedidas, precisava pensar sobre aquela ausência inesperada. Quatro passos espichados e estava em casa. Dona Clara e a menina moravam em casas geminadas. Dois mundos num abraço incompleto.

O pai encontrou-a na sala, em total alheamento. Segurava um canudinho para refrigerante pelo qual descia, lentamente, uma formiga vermelha. Era uma inútil caminhada: o canudo, invertido impiedosamente mal a formiga chegava próximo à base, constituía-se um sem fim de ir e vir, um labirinto em linha reta. Não tentou compreender aquele despropósito. Cansara de tentar decifrar o comportamento da filha. Muitas vezes culpara-se por desejar um filho, tanto e somente por ocasião da gravidez da mulher. Doía-lhe pensar na decepção. Uma filha. Que nem era bonita. Muito magra desengonçada e sem simpatia. E além de tudo amalucada, cheia de esquisitices. E os pés? Soltou quase sem sentir:

 – Pé-de-pato!

A filha voltou-se com um sorriso de janela aberta. Melhor seria ofender-se – pensou ele – ou qualquer outra reação, menos aquela luz atrevida invadindo sua cômoda e harmoniosa incompreensão. Deu-lhe as costas e saiu, mas o olhar da filha o acompanhava.

Quando a mãe chegou, o jantar foi servido. A menina sentou-se à mesa, distante dos pais.

 – E a velha, como está?

 – Nas últimas, coitada. Veio morrer em casa.

 – O sobrinho é que vai se dar bem, herdando a fazenda e o dinheiro guardado.

 – Isso é hora de falar em dinheiro, homem?

As colheres batiam nos pratos como se o vento soprasse um sino numa cidade abandonada. Onde estaria ele? Há uma semana, rosto colado à parede, ouvira um som abafado. Alguma coisa caíra no chão. Eram os jornais, tinha como certo. Um movimento estranho, jamais ouvido em todos esses anos de abelhudice, quando o corredor de Dona Clara e o quarto da menina compunham uma ampla fatia apartada do mundo. Que sentido teria agora varar a noite em desabrimento se não houvesse mais nenhuma esperança a ser regada? Tanto que o jornaleiro tinha para dizer e mostrar. Quantas histórias e verdades, sobre coisas impossíveis, prometera ele um dia, com seus olhos aflitos...

Cedo, estavam lá, novamente, ela e a mãe. Dona Clara na mesma. Francisco, precavido, usava um lencinho de cambraia bordado pela tia. Havia tirado da cristaleira mais algumas xícaras para o cafezinho e arrumava, no corredor, duas fileiras de cadeiras. A morte não era mais uma hóspede indesejada, mas uma convidada que se aguarda, cuidando que a visita não repare nas faltas.

De novo o terço. Como era domingo, os homens também puderam vir. Após cada cafezinho, um cigarro aceso na cozinha da casa. Pelo vasto corredor reza e fumaça, livres das bocas, uniam-se num perfume suave e humano.

A menina aproveitou o bulício para procurar o jornaleiro Só faltava o quarto onde a doente esperava sua hora. Entrou devagar. Dona Clara parecia dormir. Como pudera cair e se machucar tão seriamente? Não era tão velha. Muitas vezes a ajudara a trocar alguma lâmpada queimada. Casa velha, dessas de paredes altas. Francisco segurava a escada e a mulher subia com agilidade de artista de circo. A menina aparava a lâmpada que não servia mais. Sempre houve, entre as duas, uma sincronia e um amor calado e quieto.

 – Parece uma santinha, são é?

Assustou-se. Era Francisco, com passo de gato. Ajeitou o lençol, cobriu os pés da tia e encostou-se no canto do quarto, braços cruzados, pensativo. A menina percebeu algo embaixo da cama. Um azul familiar tentava escapar daquele esconderijo. Com o pé, afastou a colcha de retalhos que tocava o chão. Primeiro, parte do corpo; depois, os jornais desvelados, a mão em concha, o grito libertado.

O susto seguinte foi encontrar o olhar de Dona Clara, que buscava abrigo, cheio de palavras. Foi devagar erguendo o braço. Um dedo seco, batido pelo vento, apontou o rapaz. E demorou-se, suspenso, o tempo suficiente para que a menina entendesse o gesto. Os olhos de Francisco tentaram fugir. Enormes asas negras, infectas, roçavam, medrosas, a janela do quarto. Dona Clara rematava o fim com a generosidade de sempre, o perdão que nunca lhe faltava. Em seu rosto, na derradeira resignação, o pedido de silêncio.

 – Meu Deus! Minha tia morreu. Acudam aqui!

No alvoroço, a menina tentou ainda agarrar-se à mãe, que não pôde perceber no rosto da filha a novidade do medo.

O corredor estreitava-se. Ia esmagá-la se não passasse depressa. Da calçada, a menina pôde ver ainda o canto vazio. Um pensamento triste bateu no coração.

Ele não devia ter existido para isso.

   

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