Paulo José Cunha(*)
Diariamente enganamos, diariamente somos enganados. Mas, como se houvesse um pacto de silêncio, nem o consumidor de notícias denuncia o emissor, nem o emissor reconhece que está enganando o consumidor. E assim a vida segue, na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia.
Êh, bumba-iê-iê-iê! E olha que já vai longe o tempo em que não se distinguia informação de opinião, não se sabia onde terminava a redação e onde começava o departamento comercial. Avançamos muito. Já escrevemos “Informe Publicitário” pra dizer que não se trata de notícia, mas de propaganda. Já publicamos (!) a notícia positiva sobre o inimigo do dono do jornal e, lá dentro, no editorial, espinaframos com ele. É, aprendemos a separar as coisas. Já abrimos espaço para o direito de resposta (reconheçamos: espacinho raquítico, sovinado e mofino, reduzido a toscas e choradas linhas, sem destaque algum, lá no meio da seção de Cartas dos Leitores, mas, vá lá, pelo menos ele existe, o que não é pouca coisa). Vez por outra até reconhecemos que erramos, e nos corrigimos. Acredite: estamos nos tornando civilizados. Nos cortes das entrevistas, já não colocamos um contraplano (imagem do entrevistador ou da mão do entrevistado, para dissimular a existência do corte que caracteriza a edição de uma fala). Hoje usamos um flash. Resolveu? Será que o respeitável público sabe que aquela piscada significa que ali houve a intervenção do editor? Talvez não. Mas já é um avanço.
Ainda assim, o que não falta é chão pra andar quando se trata de ser transparente com nosso leitor, nosso ouvinte, nosso telespectador. Igualmente sobram artifícios para nos passar pelo que não somos, ou enganar os pobres diabos que nos lêem, nos ouvem ou nos assistem.
Vamos começar pelos impressos. Aposto que, se for feita uma pesquisa, raríssimos serão os leitores que conseguirão traduzir a expressão “Da Redação”. Provavelmente dirão que é texto escrito por algum jornalista do jornal ou da revista, que não quis se identificar. Poucos imaginarão que se trata de uma notícia que da redação não têm nadica de nadinha. Desinformado, o público leitor jamais suspeitará que, muitas vezes, a notícia “Da Redação” que está lendo é apenas a transcrição ipisis literis do texto que uma agência de notícias despejou via internet (antigamente chegava por telex) na redação. E aí, magicamente, em vez de ser da autoria da agência tal ou qual, transformou-se em notícia “Da Redação”. A prática lembra um pouco aquelas mulheres que botam um balde de silicone nos peitos e se orgulham de dizer: “São meus. Paguei uma baba por eles”.
Nos veículos audiovisuais o truque é feito, digamos, com mais “catiguría”, mas a desfaçatez é a mesma. Em pouquíssimos casos, as matérias dos correspondentes internacionais são o resultado de produção própria. Na maioria das vezes, resultam da "cozinha" do material recebido de agências internacionais. Só que as emissoras de tv não revelam isso, não dão crédito às agências que as produziram nem naquelas letrinhas, que correm lá no final do telejornal. Se for feita uma pesquisa, o povão vai responder que as imagens internacionais que assiste foram produzidas pela emissora que os veicula. Nunca desconfiará que as emissoras alugam o trabalho de agências que lhes fornecem diariamente o material de que seus correspondentes se servem para fechar suas matérias. Com uma “discreta” agravante: quando um correspondente estrangeiro apresenta, de Londres, uma matéria sobre a explosão de um carro-bomba no Iraque, pouca gente sabe que, na verdade, a matéria poderia ter sido fechada ali na esquina que não faria a menor diferença. Apenas o destinatário das imagens das agências foi Londres e não Quixeramobim. Como dá mais charme escrever debaixo do nome do repórter: “Londres” do que “Quixeramobim”, a matéria é fechada pelo escritório de Londres. Vira "internacional"...
Outra enganação freqüente e pouco percebida é a da conversão da enquête em pesquisa, quando se sabe perfeitamente que uma coisa não tem rigorosamente nada a ver com a outra. É comum um repórter ouvir três ou quatro pessoas sobre qualquer tema e depois afirmar, como se fosse a verdade mais absoluta, que a população está a favor disso ou daquilo, seguido de três ou quatro opiniões no mesmo sentido. Base científica para fazer tal afirmação? Nenhuma. Mas quem se importa com isso?
No dia em que os jornais voltarem a dizer (sim, no passado eles diziam ao leitor que a matéria que iriam ler era da Associated Press ou da France Press) a origem da informação hoje escondida atrás do rótulo “Da Redação” retomaremos o caminho que um dia nos permitiu separar notícia de publicidade. No dia em que as emissoras de televisão creditarem a origem das imagens que o distinto público está assistindo, ele poderá pelo menos saber o viés ideológico de quem as captou (o ângulo editorial de uma matéria da Fox não tem nada a ver com a mesma matéria feita pela BBC ou pela CNN). Historinha rápida: durante a invasão do Iraque, Ana Paula Padrão mostrou no “Jornal da Globo” cenas de soldados norte-americanos ajoelhados em sinal de boa vontade para reduzir a ira dos religiosos que temiam a depredação de uma mesquita em Bagdá. Cenas que algumas agências distribuíram, outras não, por temer que fossem traduzidas como um ato de submissão das tropas norte-americanas ao inimigo. Ou seja: existem agências e agências. Como existem padarias e padarias.
Convém saber e dar a saber a procedência do pão. E das notícias.
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(*) Estudei com Paulo José Cunha em 1970. Fizemos algumas coisas na imprensa do Piauí (depois eu falo). Mas o homem sumiu. Diziam estar em Brasília em órbita das esculturas do Niemeyer. Depois o vi na tela da Globo. Hoje apresenta um programa na TV Câmara (todo dia cedinho) e é professor da UnB. Escreveu livro, virou famoso e dá as caras aqui no espaço infinito.
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