Luiz Horácio
.
“Todos os romances são autobiográficos, diz Javier
Cercas. É uma espécie de striptease em sentido inverso: a partir de sua própria
experiência, é revelado o que existe de
mais autêntico, de melhor. A técnica literária coloca vestidos, chapéus
e torna
irreconhecível. Isto é, escrever um romance. "
Javier
Cercas é o autor de Anatomia de um instante, considerado
o melhor livro editado no ano de 2009 em
castelhano pelo suplemento literário Babelia, do
jornal espanhol El Pais.
O tema é o golpe anti-democrático comandado pelo tenente-coronel Antonio
Tejero em 23 de fevereiro de 1981.
Tejero invadiu a câmara dos deputados de
pistola em punho gritando "Todo mundo quieto". A seguir alguém gritou
"Silêncio" logo "Todo mundo quieto", a seqüência: "No
chão", "No chão todo mundo."
Quase todos os presentes obedeceram imediatamente, prontamente
convencidos por aquele que empunhava a pistola e que também a disparou. Para o
ar, mas disparou. O quase todos se deve ao presidente Adolfo Suárez, ao ministro da defesa General
Mellado, e Santiago Carrillo, secretário geral do PCE.
Os três permaneceram sentados, recusando
o mergulho "ao chão."
Você,democrático leitor, já deve ter
concluído: esse livro é mais um libelo anti-golpe, daqueles que satanizam os
golpistas e santificam os depostos. Errado.
Javier Cercas, mostra que anjos e demônios habitavam os dois
universos, predominando os demônios. Como exemplo dessa isenção repare bem como
o autor trata Adolfo Suárez e Santiago
Carrillo. Nada de novo, visto que o
cenário é o hábitat de políticos, de militares, de militares tentando ser
políticos. E quando essas correntes buscam o mesmo objetivo, a população paga a
conta.Todas as contas possíveis e imagináveis.
Anatomia de um instante é, em primeiro lugar, um manual de sobrevivência no território do
"animal político".
Conclusão deste aprendiz: "Não
temer tais palhaços, tampouco rir de suas estultices. São animais venenosos, no
entanto, devemos desprezá-los"
Javier Cercas escreveu um romance, um
ensaio, um livro de História onde exuma um tempo triste, impossível de evitar
enquanto não for extinto o animal político e, consequentemente, seus atos
desgraçados.
Atenção redobrada, indefeso leitor, mãe
de ditador está sempre grávida.
Em tempos onde políticos infestam
nosso país com seu marketing de quinta, a leitura de Anatomia de um instante alcança status de imprescindível.
Conclusão deste aprendiz: “o animal político” jamais será domesticado.
Traiçoeiro, não tardará a mostrar suas garras.
Cercas não deixa dúvidas a respeito do
caráter instável dos políticos. Ao mostrar o presidente Adolfo Suárez como um tipo ambicioso, sedutor, ao
mesmo tempo capaz de eliminar qualquer um que se atreva atravessar seu caminho,
aponta a periculosidade do “animal político.”
Suárez conveceu todas correntes que ele
era pessoa ideal para cuidar dos interesses do povo. Enquanto isso, cuidava
exclusivamente dos seus. Aos franquistas deixou a impressão de alguém capaz de
manter tal chama acesa, ao Rei deu a entender que se tratava de um monarquista
ferrenho e vendeu o mesmo peixe
disfarçado ao seu partido, também abrigo de franquistas, além de amansar o
exército. Assim que Suárez chega ao
poder defenestra os franquistas, faz seu vice um militar, Gutiérez Mellado, e
“fazendo jus ao caráter pra lá de volúvel, legalizou o Partido Comunista.
O Rei também mereceu atenção de Cercas.
Sua majestade fez de Suárez o presidente, não demorou para se decepcionar
com seus método de fazer política.
.Javier Cercas exuma o cadáver do golpe, vai aos detalhes,
aprofunda a investigação, mostra que ações de direita e esquerda se relacionam
e se complementam. Nada escapa ao seu rigoroso olhar. Busca os autores
intelectuais do golpe, mostra a reação dos deputados quando da entrada
intempestiva de Tejero, desvenda o que se passou pela cabeça de Suárez, de Mellado e Carillo durante a
performance do tenente-coronel. Curioso e triste o relato deste indispensável autor.
Cercas não se limita a narrar o episódio, também se
posiciona. E de forma corajosa diz que o fracasso do golpe de estado apagou a
tensão reinante no país. O frustrado golpe serviu para fazer a assepsia,
eliminou a insegurança que já durava décadas
O
livro traz uma imensa quantidade de informações que podem ser retomadas
individualmente em narrativas futuras, o pontapé inicial pode ser, sempre, o
golpe de estado espanhol. Talvez a maior virtude, entre tantas, dessa obra seja
exatamente a incansável análise desse
momento político. Um momento televisivo. Televisivo, isso mesmo, a televisão
espanhola registrou o acontecimento. Banalizou? Tornou espetáculo?
Manipulou? Permita a redundância, arguto
leitor: um espetáculo trágico....patético....estúpido. Volte, paciente leitor,
a frase de Cercas que dá início a este
texto. Ensaio, romance, ensaio histórico, seja o que for. Aconteceu.Acontece.
Acontecerá.....
Para encerrar,uma observação: Javier Cercas
escreveu uma obra de grande valor, mas não podemos esquecer que tudo que se lê
em Anatomia de um instante é por demais sabido, não só por espanhóis, mas por todos
que conheçam um pouco da história da Espanha. Arrisco dizer que o autor fez uma
cuidadosa compilação e sob seu inquetionável talento, deu no que deu. O que não
implica demérito algum. Mas uma ressalva sempre cai bem.
Um comentário:
Parabéns Luíz pelo trabalho!
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