domingo, 2 de setembro de 2012

ANATOMIA DE UM INSTANTE


Anatomia de um Instante - Javier Cercas

Luiz Horácio
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 Todos os romances são autobiográficos, diz Javier Cercas. É uma espécie de striptease em sentido inverso: a partir de sua própria experiência, é revelado  o que existe de mais autêntico,  de melhor.  A técnica literária coloca vestidos, chapéus e  torna  irreconhecível. Isto é, escrever um romance. "

Javier Cercas é o autor de Anatomia de um instante, considerado o melhor livro editado no ano de  2009 em castelhano pelo suplemento literário Babelia, do jornal  espanhol El Pais.

O tema é o golpe anti-democrático comandado pelo tenente-coronel Antonio Tejero em 23 de fevereiro de 1981.

Tejero invadiu a câmara dos deputados de pistola em punho gritando "Todo mundo quieto". A seguir alguém gritou "Silêncio" logo "Todo mundo quieto", a seqüência: "No chão", "No chão todo mundo."  Quase todos os presentes obedeceram imediatamente, prontamente convencidos por aquele que empunhava a pistola e que também a disparou. Para o ar, mas disparou. O quase todos se deve ao presidente  Adolfo Suárez, ao ministro da defesa General Mellado, e Santiago Carrillo, secretário geral do PCE.

Os três permaneceram sentados, recusando o mergulho  "ao chão."

Você,democrático leitor, já deve ter concluído: esse livro é mais um libelo anti-golpe, daqueles que satanizam os golpistas e santificam os depostos. Errado.

 Javier Cercas, mostra  que anjos e demônios habitavam os dois universos, predominando os demônios. Como exemplo dessa isenção repare bem como o autor trata  Adolfo Suárez e Santiago Carrillo. Nada de novo, visto que  o cenário é o hábitat de políticos, de militares, de militares tentando ser políticos. E quando essas correntes buscam o mesmo objetivo, a população paga a conta.Todas as contas possíveis e imagináveis.

Anatomia de um instante é, em primeiro lugar, um manual de sobrevivência no território do "animal político".

Conclusão deste aprendiz: "Não temer tais palhaços, tampouco rir de suas estultices. São animais venenosos, no entanto, devemos desprezá-los"

Javier Cercas escreveu um romance, um ensaio, um livro de História onde exuma um tempo triste, impossível de evitar enquanto não for extinto o animal político e, consequentemente, seus atos desgraçados.

Atenção redobrada, indefeso leitor, mãe de ditador está sempre grávida.

Em tempos onde políticos infestam nosso  país com seu  marketing de quinta, a leitura de Anatomia de um instante alcança status de imprescindível. Conclusão deste aprendiz: “o animal político” jamais será domesticado. Traiçoeiro, não tardará a mostrar suas garras.

Cercas não deixa dúvidas a respeito do caráter instável dos políticos. Ao mostrar o presidente Adolfo  Suárez como um tipo ambicioso, sedutor, ao mesmo tempo capaz de eliminar qualquer um que se atreva atravessar seu caminho, aponta a periculosidade do “animal político.”

Suárez conveceu todas correntes que ele era pessoa ideal para cuidar dos interesses do povo. Enquanto isso, cuidava exclusivamente dos seus. Aos franquistas deixou a impressão de alguém capaz de manter tal chama acesa, ao Rei deu a entender que se tratava de um monarquista ferrenho e vendeu o mesmo  peixe disfarçado ao seu partido, também abrigo de franquistas, além de amansar o exército.  Assim que Suárez chega ao poder defenestra os franquistas, faz seu vice um militar, Gutiérez Mellado, e “fazendo jus ao caráter pra lá de volúvel, legalizou o Partido Comunista.

O Rei também mereceu atenção de Cercas. Sua majestade fez de Suárez o presidente, não demorou para se decepcionar com  seus método de fazer política.

.Javier Cercas exuma o cadáver do golpe, vai aos detalhes, aprofunda a investigação, mostra que ações de direita e esquerda se relacionam e se complementam. Nada escapa ao seu rigoroso olhar. Busca os autores intelectuais do golpe, mostra a reação dos deputados quando da entrada intempestiva de Tejero, desvenda o que se passou pela cabeça  de Suárez, de Mellado e Carillo durante a performance do tenente-coronel. Curioso e triste o relato  deste indispensável autor.

Cercas não se limita a narrar o episódio, também se posiciona. E de forma corajosa diz que o fracasso do golpe de estado apagou a tensão reinante no país. O frustrado golpe serviu para fazer a assepsia, eliminou a insegurança que já durava décadas
  O livro traz uma imensa quantidade de informações que podem ser retomadas individualmente em narrativas futuras, o pontapé inicial pode ser, sempre, o golpe de estado espanhol. Talvez a maior virtude, entre tantas, dessa obra seja exatamente  a incansável análise desse momento político. Um momento televisivo. Televisivo, isso mesmo, a televisão espanhola registrou o acontecimento. Banalizou? Tornou espetáculo? Manipulou?  Permita a redundância, arguto leitor: um espetáculo trágico....patético....estúpido. Volte, paciente leitor, a  frase de Cercas que dá início a este texto. Ensaio, romance, ensaio histórico, seja o que for. Aconteceu.Acontece. Acontecerá.....

Para encerrar,uma observação: Javier Cercas escreveu uma obra de grande valor, mas não podemos esquecer que tudo que se lê em Anatomia de um instante é por demais sabido, não só por espanhóis, mas por todos que conheçam um pouco da história da Espanha. Arrisco dizer que o autor fez uma cuidadosa compilação e sob seu inquetionável talento, deu no que deu. O que não implica demérito algum. Mas uma ressalva sempre cai bem.

Um comentário:

Iracy de Souza disse...

Parabéns Luíz pelo trabalho!