Afonso Lima prestigia o leitor com o poema trágico de um crime impune
Menezes y Morais *
Cerca de sessenta e oito anos depois de ocorridos, os crimes que transformaram Teresina (PI) numa capital em chamas, na década de 1940, continuam impunes. Não é por falta de literatura sobre os atos criminosos, mas sim pela omissão do Estado. A esta literatura, soma-se o poema épico A Cidade em Chamas – Poema trágico de um crime impune (2010), do poeta, ator, músico, diretor, dramaturgo, escritor e advogado Afonso Lima.
Teresina foi fundada em 1852 pelo Conselheiro Saraiva, quando transferiu (de Oeiras) a Capital do Estado. Localizada entre os rios Poti e Parnaíba, planejada, antropônimo inventado (fusão de Teresa Cristina, nome da mulher do Imperador D. Pedro I, Conselheiro Saraiva fez isso para puxar o saco).
Apelidos
Teresina ganhou posteriormente os apelidos de “Chapada do Corisco” – devido a grande incidência de raios – e de “Cidade Verde”, este último pelo escritor Coelho Neto, e com certeza ameaçado pelo desmatamento sistemático imposto pelo progresso. Ao contrário da coriscada, que continua caindo. Outro dia mesmo vi um documentário na TV do sul sobre o fenômeno, comum em Teresina e São Paulo.
Quanto aos incêndios criminosos, na década de 1940 – o Mundo vivia a II Guerra Mundial e o Brasil a ditadura do Estado Novo (1937-45) – Teresina foi vítima de uma onda de incêndios criminosos, “com as características de mistério e devastação,” conforme testemunhos contemporâneos, entre eles o deputado José Cândido Ferraz, que denunciou os crimes ao Brasil, em discurso de 1946.
Crime de Estado
Os incêndios aconteciam há pelos menos desde 44. Há quem diga 42. Consenso, os crimes duraram até 46. Em 45, Humberto Teles afirmou:
“Vitor do Espírito Santo acusa o Sr. Interventor (Leônidas Melo) por tudo. (...) Será isto uma campanha de extermínio às palhoças que enfeiam a cidade, ou alguma campanha contra o mocambo? Nem assim estão com a razão as autoridades, pois se na verdade querem elas uma Teresina bonita, que a transformem segundo os métodos do urbanismo, contanto que não destruam o que o povo com sacrifício constrói”.
Vitor do Espírito Santo estava certo, sua denúncia não foi em vão. As autoridades – não resta dúvida, depois de tanta literatura sobre o tema – continuaram patrocinando os incêndios das residências populares, para impedir o povo de habitar nas chamadas zonas nobres da cidade. De um lado, os sem-teto erguiam suas casas de palha, em busca da dignidade; do outro, os abastados, que, não vendo os casebres no centro da cidade com bons olhos, mandavam incendiar.
“Vítimas da gestapo”
Assim, numa luta desigual, fosse à noite ou sob a luz do sol, as choupanas ardiam em chamas. Um texto datado de 31 de julho de 1946, publicado no Jornal do “O Piauí”. Informa: “Na tarde do domingo último, a zona beira-rio denominada Palha de Arroz foi o ponto visado pelos criminosos. Mais de cem pessoas ficaram sem teto, muitas das quais no mais absoluto desamparo. (...)... a polícia não consentia que os objetos e mercadorias (do interior das choupas) fossem removidos para a rua ou outros locais”. Este incêndio durou cinco dias, monitorado pela PM.
Ora, se a PM não permitia que as vítimas retirassem seus utensílios dos casebres em chamas, é porque tinha ordens superiores. Afinal, o papel da PM não é defender a vida da sociedade? É a sociedade quem paga o salário da PM. Em agosto de 46 o jornal “O Piauí” informava: as investigações prosseguem para identificar os criminosos: “as vítimas da gestapo evilasianas foram novamente presas. (...) Como se explica que a zona denominada Palha de Arroz tivesse sido queimada cinco dias consecutivos quando desde o primeiro se achava interditada e vigiada pela polícia?”
Sensibilidade estética
A Cidade em Chamas trata desse crime histórico. É um poema épico dividido em 10 movimentos, nos quais poesia e história se fundem em valor estético, se intercruzam, configurando o painel da agonia popular, retrato da tragédia social. É claro que o Estado brasileiro estava envolvido com os crimes, vários de seus dirigentes – interventores da ditadura do Estado Novo – são citados pelo povo.
O que Afonso Lima fez foi debruçar-se sobre os fatos históricos, fundindo pesquisa e sensibilidade estética, na construção de um poema épico, com personagens reais, oriundos do povo (os “filhos de ninguém”) e da elite dirigente. As vítimas não podiam denunciar. Quem ousava era preso “sem mandados sem flagrantes (...). O crime é político com hora marcada”, diz Afonso Lima. As vítimas, aliás, eram inclusive proibidas de pronunciar a palavra incêndio.
Comissão da Verdade?
Hoje, cerca de sessenta e oito anos depois, as vítimas dos incêndios nem seus descentes foram indenizados, sequer receberam um pedido de desculpas do Estado, pela atitude criminosa dos seus então dirigentes. Não seria de bom tom provocar a Comissão da Verdade?
Afonso Lima filia-se aos escritores, pesquisadores, historiadores, poetas que se empenharam em passar essa história a limpo, a exemplo de H. Dobal, Victor Gonçalves Neto, Fontes Ibiapina, Francisco Alcides do Nascimento.
Poema histórico
Com A Cidade em Chamas, Afonso Lima também resgata a tradição do poema histórico, iniciada pelo poeta e tradutor latino Nevio (fl.c.235 – 204 a. C), com Guerra Púnicas. No Brasil, podemos incluir nessa linhagem Navio Negreiros, de Castro Alves, certamente tão caro à textura de A Cidade em Chamas.
O poema épico de AL foi composto e publicado na “musa tórrida advir”. O livro tem apresentação do professor e documentarista João de Lima e prefácio de Ací Campelo, dramaturgo e escritor.
Paulo Moura
A Cidade em Chamas agrega ainda a arte de Paulo Moura, autor do projeto gráfico e ilustrações, que dão mais poesia visual e plasticidade ao livro.
Pelo que representa, pelo fôlego poético, pela linguagem dosada entre poesia e prosa, com A Cidade em Chamas Afonso Lima lega à Literatura brasileira uma obra de rara beleza dramática e estética.
Serviço
Contato com Afonso Lima: zafonsolima@hotmail.com
*Menezes y Morais, poeta, escritor, jornalista, professor e historiador. Autor, entre outros, do romance A Íris do Olho da Noite (Thesaurus, 2011). www.thesaurus.com.br
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