domingo, 19 de agosto de 2012

Nós, os mafrenses


Edmar Oliveira

Domingos Afonso Mafrense, o Domingos do Sertão, foi um dos pais da nação Piauí. O outro foi Domingos Jorge Velho, matador de índios e comedor de carne humana, hábito que aprendeu com os seus inimigos e o tinha para mostrar a valentia daquele branco embrenhado nas matas, já esquecido do português por falar um nheengatu, tronco linguístico entre caboclos e diversas tribos tupi-guarani.

Mas notem, se conhecemos nossos pais pelo nome, nossas mães foram todas as irmãs, primas e esposas do Mandu Ladino, herói indígena só agora redescoberto pelo belíssimo romance de Anfrísio Lobão Castelo Branco, filho dos Domingos, e que vai às telas do cinema num filme de Paulo Betti. 

Mafrense nos nomeia filhos da terra porque o português de Mafra fundou a fazenda Cabobró, depois vila do Mocha, atual Oeiras, a primeira capital do Estado. Ele foi o colonizador organizado que plantava fazendas com uma igreja, e sempre em torno da qual uma vila se formava dando origem as nossas cidades. Parnaguá, Jerumenha, Campo Maior (a Bitorocara dos Carvalho e Aguiar), São João da Parnaíba, Marvão (atual Castelo) e Valença assim começaram. 

Domingos do Sertão tinha, durante sua vida de colonizador e matador dos gentios, grilado grande quantidade de terras no nosso Estado. Conta Esmaragdo de Freitas, um dos nossos grandes contistas, que quando Mafrense morreu, sem deixar herdeiros, suas terras ficaram com os jesuítas em inominável episódio. 

Já muito doente e sob os cuidados de padres jesuítas, estes mandaram buscar um tabelião para que fizesse um testamento de herança. Quando o tabelião chegou encontrou o moribundo com a cabeça no colo de um dos padres. Perguntou se as terras ficariam para os jesuítas, já que não tinha herdeiros. A cabeça de Mafrense, no colo do padre, acenou afirmativamente. Espertamente o tabelião perguntou se uma fazenda do seu interesse ficaria para ele, tabelião. O moribundo não respondeu. O homem do cartório fez novamente a pergunta, enfatizando que era para saber se o moribundo já não estava morto, o que invalidaria a primeira afirmação que ele dizia não ter percebido muito bem. Desta vez o moribundo respondeu afirmativamente e o tabelião ficou com sua fazenda, fazendo a passagem das demais aos padres jesuítas. Ele tinha percebido que Mafrense já estava morto e o padre que lhe segurava a cabeça no colo fazia um sim manipulando a cabeça do morto.

Foi assim que tiramos de um de nossos pais a nossa aldeia, e agradecidos nos denominamos mafrenses por ele ter concordado conosco, mesmo depois de morto. Éramos ladinos, antes mesmo do Mandu.

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