Recebi de uma grande amiga uma mensagem que dizia: Ele começa
o dia com um sorriso. E você? A mensagem trazia uma sequência de
fotos com um lindo garoto branco, num local limpíssimo, e sorriso também
branco estampado na cara bem alimentada. O Detalhe trágico da foto era que
lhe faltavam as pernas. O menino caucasiano de sorriso meigo aparecia exibindo
suas próteses e se divertindo, dentro de sua limitação, com esportes telúricos
e aquáticos. Ora, é evidente que essa minha amiga queria me dizer algo
como: Não seja mal-humorado, pois você tem tudo e alguns que não têm
nada são tão mais receptivos. OU, pior ainda, talvez quisesse me dizer: Não
reclame da vida, tem gente em muito pior estado do que o seu.
E aí me vêm duas perguntinhas cabais: Que estado é o meu? O
que ando fazendo para merecer a culpa de não querer começar o dia
sorrindo?
Peguei-me a pensar nisso e cheguei a algumas crenças fundamentais que
vão pautar a minha vida:
1.
1. Eu não sou obrigado a ser feliz. Não sou obrigado a procurar a
felicidade. Não sou obrigado a ser sempre meigo e doce com quem quer que seja.
Felicidade é invenção da literatura burguesa. Além do amor, os escritores e
artistas burgueses, especialmente os românticos, inventaram esse negócio de ser
feliz e sorrir toda manhã. Schopenhauer, e muito antes dele Sidharta e todos os
budistas, já tinha desconfiado de que essa tentativa esquisita de ser feliz a
qualquer preço é o princípio trágico da infelicidade. Ora, se gasto meu tempo
tentando ser feliz e – cá pra nós – são raros os momentos de felicidade, é
óbvio que na maior parte do tempo estarei frustrado e... triste. Portanto, não
me submeto a ser feliz para agradar ninguém.
2.
2. Porque o fato de um pobre sem pernas sorrir pelas manhãs deve servir de
paradigma para toda a raça humana e fonte de obrigação? Ora, se o garoto-toco
sorri nas fotos ( que nem sei se realmente é sintoma de felicidade) é porque
ele tem seus motivos que não são os meus. Se a nova prótese lhe causa menos
dor, isso é sim um motivo para que ele sorria, né mesmo? O fato de ser um
garoto-toco, por outro lado, não é condição primeira para ser triste. Claro que
não. Ser triste também não é obrigação de ninguém.
3.
3. Mensagens desse tipo sempre trazem como princípio lógico – ou que se
quer lógica – o fato de que a miséria do mundo é sempre maior do que a minha e,
portanto, eu devo agradecer aos céus por ser menos miserável. Ora, que
desgraceira é essa? Se milhões morrem na Etiópia eu devo ficar feliz por ter comida
em minha mesa? Se o garoto-toco é um toquinho caucasiano, eu devo regozijar-me
por ter, intactos, meus cambitos? Claro que não, lamento muito a ausência de
pernas nos homens-toco do mundo. A miséria de qualquer um no mundo me diminui.
Sei que não resolverei nunca os problemas do mundo, até porque a única coisa de
que disponho é a minha literatura pobre, tosca, mas nem isso me dá o direito de
achar que estou confortável porque tenho pernas e comidas, coisas que outros
não têm.E quero deixar registrado que ninguem no mundo sabe a incompletude
dos seus semelhantes. Somos todos, mesmo que organicamente íntegros,
homens-tocos sobre a terra.
4.
4. Ser feliz é, ainda, uma invenção do diabo para nos provocar a gula,
a ambição, a guerra. Ser triste, por sua vez, é coisa de um Deus que nos quer
temerosos do fim do mundo e passemos a encher igrejas para garantirmos a
felicidade...no céu. Nao quero ofender a crença de ninguem, meus amigos, apenas
quero pacificamente expor minha descrença. NO fundo, lá no fundinho, eu bem que
gostaria de crer como vocês crêem, pois assim a vida seria muito mais
suportável. Mas, como Drummond, creio que nasci gauche. Talvez mais gauche que
qualquer gauche, do avesso.
5.
5. Na paz!
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desenho: Boris, o homem-tronco de Jaguar, que saía no Pasquim
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