Leo
Almeida
Quando
pequeno, curvado por tanto sonho, me disseram que aquela flor vermelha no
cerrado era a “flor do cão”. Não me ocorre agora quem me a batizou naqueles
tempos. Pode ser que tenha sido meu pai, um amigo dele, um colega de escola,
não lembro agora. Mas de uma coisa nunca me esqueci, aquela era a “flor do
cão”. Para quem a conhece, é flor de um vermelho agressivo, quase vivo, e que
salpica o verde e cinza do cerrado com pontinhos escarlates, peludos. Sim, é
uma flor peluda, minúsculos filamentos rubros que se expandem numa explosão de
cor e volúpia. No menino que ouviu esse nome, ficou guardada a imagem de flor
do Diabo, do Demo, não flor canina. As caminhadas para a escola, feitas numa
trilha no meio do mato, eram testemunhadas por algumas dessas flores, que
também me viam correr, ao fim da tarde, para assistir ao Batman na TV Tupi e ao
programa do Tio Darlan. Era 1968. Quantas vezes me peguei perguntando o porquê
de “flor do cão”. Será que o inferno era assim vermelho? Se fosse, seria
tão bonito o reino do capeta, eu cria, e ao mesmo tempo mergulhava num dilema
que envolvia a idéia de não poder haver beleza no cão, nem em seu reino.
Naquela época eu ainda temia papai do céu e as artimanhas do capiroto e me era
inadmissível haver coisa boa em Lúcifer. Então, um bicho bobo, me
perguntava: Por que flor do cão? O menino que fui guardou a imagem e o nome.
Hoje, caminhando, deparei-me com alguns exemplares dessas flores do cerrado e,
por instantes, vi-me um menino velho, curvado menos por sonhos que por
reumatismo, e me ajoelhei para flagrar-lhe a face rubra no meio do mato. Acho
que tinha muito de resgate de um menino que não volta mais, que perdeu-se
naquelas trilhas do cerrado, cercado por flores do cão, em disparada para ver o
homem-morcego derrotar pingüins e charadas. Sei que esse ponto vermelho no
cerrado tem um nome, dizem–no Caliandra, nome sem graça, sem mito, sem
fantasia. Ao adentrar cuidadosamente o mato, com medo de cobra e escorpião, e
me apoiar num galho seco para registrar a flor, senti-me como o narrador do Aleph, ridículo e decidido, acomodando-me
na melhor posição para ver, naquela flor peluda e vermelha, uma vida inteira.
Sim, era essa a sensação que tinha ao fotografar a flor: estava lembrando de
minha infância sepultada no tempo, de mim, menino morto e esquecido, abandonado
lá atrás, de olhar perdido numa guirlanda fúnebre de flores do cão. Talvez
crescer seja isso mesmo, enterrar pedacinhos de nós na lembrança, os sonhos
realizados ou não, desejos saciados ou recolhidos, gente amada, desalmada,
querida, rejeitada, e salpicar pequenas cruzes em nossa alma, esse
grande cemitério de vontades.
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Leo é escritor, músico, compositor. Conheci-o na minha ida a Brasília. É um novo colaborador do Piauinauta, com muita honra para a família em órbita.
5 comentários:
A honra é minha, meu caro. Obrigado por me deixar invadir sua praia. Abraço.
Leo Almeida
Muito bom. Escreve chorando.
Só de uma coisa discordo: Caliandra é nome forte!
Cerrado do Meu Coração
Jerusa Eulálio
Meu senhor dono da casa,
Da licença de chegar.
Viemos anunciar, alertar e convidar a salvar a natureza
O cerrado! A nossa grande mãe beleza.
Cerrado de poeira vermelha
De árvores desordenadas e retorcidas
De murundus e veredas
O guarda águas dos sertões.
Das terras brasileiras de nossos corações.
Cerrado pai das águas, caixa d’água nacional
Tem águas emendadas, corre norte, corre sul.
Nessas águas corredeiras
Têm pintado, piau, traíra, piracanjuba, abotoado e pacú.
Riscam o céu em meio às nuvens
Aves em extinção
Pica-pau, papagaio, sabiá,
Macuco, mutum e mergulhão.
No cerrado tem catira, tem folia tem brincadeira.
Capivara, tamanduá e urutu
Dançam na mata com a jaguatirica, o gambá e o tatu.
Também rodopiam e salteiam
A onça-pintada, o lobo-guará e o teiú.
Sua vegetação é medicinal,
É remédio natural.
Assa-peixe, pau-ferro, barbatimão,
Chapéu de couro, pau-pombo, cipó-de-são-joão.
Cura males, cura dores, curam feridas,
Suas plantas salvam vidas.
Existe um colorido perfumado por todo lado.
Quaresmeiras, ipês, bromélias,
Orquídeas e figueiras.
A mais bonita com certeza
É a flor do diabo,
A caliandra do cerrado.
Vamos salvar!
Para erosão não devorar.
Vamos replantar para a terra a chuva não levar.
O negócio é salvar!
Para o cerrado nos recompensar
Com muita fartura:
Pequi, jatobá,
Babaçu, buriti,
Mangaba e Ingá.
Venha cá! Vamos sair por aí!
Ensinando a cuidar.
Não desmatar para o córrego não assorear.
Respeitar o tempo da natureza para ela reflorestar.
Não jogar lixo nas ruas nem da água abusar,
Queimadas? Nem pensar!
A natureza não perdoa,
Ela pode nos castigar.
Meu senhor dono da casa dá licença de sair
Agora vamos embora
Pelo cerrado afora.
Todas as crianças vão gostar
E do cerrado vão cuidar.
Parabéns o Léo com sua prosa e a Geruaa com a poesia. O cerrado agradece.
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