domingo, 23 de outubro de 2011

Viagem ao Passado III

Edmar Oliveira

Palmeirais cresceu muito no rumo de Teresina. Fomos atravessar o Cadoz, riacho que ficava muito lá em cima como que a dividir a cidade da zona rural, tendo passado por casas e bairros que não conhecíamos. Entrando vagarosamente na cidade, só o chão se fazia diferente. Em vez das ruas de areia branca dos meus pés descalços, um calçamento novo, algumas vias já em asfalto. Só o chão mudara. O céu da mesma cor, aquele azul de arder nos olhos com algumas nuvens de algodão que caminhavam depressa, como se procurassem água para se fazerem cinza. Em vão.

As casas desfilavam como se perfilhassem na forma e cores que tínhamos na lembrança. Geraldo, meu companheiro dessa aventura em busca do nosso passado, tinha os olhos brilhando e inquietos, como se tentasse refazer nas suas memórias as imagens que apareciam enquanto percorríamos as ruas procurando a beira do rio. Tínhamos sido avisados, que um lugar chamado “Tibungo”, muito na beiro do rio, por trás da antiga Usina Elétrica, tinha uns quartos de aluguel. “Tibungo”! A onomatopéia do mergulho que há muito tempo escutávamos quando um corpo “tibungava” nas águas do Parnaíba. O lugar não existia no nosso passado, mas como derivava de um verbo da nossa infância era como se já existisse.

Achamos a igreja, as mangueiras da praça e a antiga Usina. O “Tibungo” devia ser descendo a rua no rumo do rio. Era uma mistura de restaurante, botequim e pensão, onde o Reginaldo Rossi cantava canções bregas. Dona Zenóbia, a dona do lugar, nos recebeu com uma cerveja super gelada e logo o rio, que passava manso, escutava reminiscências e graus de parentesco numa cidade em que toda a população se conhecia. Zenóbia, depois das praxes de apresentações dos filhos da terra (filho de quem com quem?) telefonou para dois primos meus. Tínhamos nos conhecidos quando crianças. A moça, que ficara com as belas feições da tia, era a primeira dama da cidade. Seu irmão, o Secretário de Cultura. Então estávamos apresentados e toda a cidade já estava se interrogando o que dois forasteiros faziam ali num dia de semana, conversando com as autoridades da cidade. Foi uma prosa boa, almoçando carne de sol, e falamos de nós mesmos, sem as patentes que recebemos enquanto envelhecíamos, apenas das crianças de muitos anos atrás. E enquanto conversávamos Zenóbia queria saber se preparava a janta, uma galinha que tinha de ser morta ainda cedo. Era como se o sacrifício da galinha nos recebesse no passado.

A tarde pareceu pequena para tanta conversa de uma outra época. Geraldo nascera na beira do rio, do lado de lá, um pouco mais abaixo. O meu rio era dos dois lados. A Barreirinha, tão perto de Palmeirais, do lado de cá. A casa do meu avô materno no final da rua da Usina, rio abaixo, e o porto, por onde se atravessava para as Queimadas, terras dos Alvarengas, um deles casado com uma tia minha e onde meu avô fazia roça.

Acompanhei o velho Pedro Solano, meu avô, na travessia do rio para chegar na roça, nas terras das Queimadas. Pequenino, quando minha avó paterna lavava roupa na beira do rio, bem ali ao lado do “Tibungo”, eu pescava piabas com um alfinete dobrado em forma de anzol e uma linha de carretel. Parei de escutar os presentes e fiquei olhando a beira do rio, vendo a vó Bebela, com sua farta cabeleira em coque, já branquinha, ensaboando a roupa e colocando nas pedras do quaradouro. Quando ela desapareceu voltei à conversa.

E ficamos gargalhando, falando dos parentes, da casa dos Alvarengas, do outro lado do rio, que já era o Maranhão; do meu avô paterno, seu Sessé, tabelião da cidade. E o rio corria manso, escutando as conversas e fazendo umas pororocas quando achava que falávamos mentiras. Que são apenas algumas verdades que esqueceram de acontecer, como sentenciou Quintana.

Ali, naquela tarde morna e cheia de lembranças, Da Costa e Silva, nosso poeta maior da vizinha cidade de Amarante, nos segredava: “Saudade! Amor de minha terra... o rio / Cantigas de águas claras soluçando”...



Aguardem o quarto capítulo dessa aventura sentimental...
Fotos: Edmar, igrejinha que achava grande; rio Parnaiba, manso.

Quem quiser ler os outros capítulos é só colocar Viagem ao Passado na pesquisa do blog. Todos os capítulos estarão disponíveis.


Um comentário:

Fatima Lima disse...

Edmardasoliveiras: Natal te/me engoliu. Tava com visitas, enfim. Te encontro navegando em águas do passado/presente tão parecidas com as águas do meu Espinharas. Teu texto me toca intensamente. Quase chorei. Quer dizer, chorei. Um abração de Grauna