domingo, 5 de dezembro de 2010

Ruminantes considerações bovinas



Geraldo Borges




Quando nos, os animais, falávamos, até que podíamos desabafar. Hoje tudo mudou. Ninguém mais abre o bico. E se e ainda possuíssemos este dom eu abriria o verbo para dizer um bocado de coisa que está atravessado em minha garganta. Eles não entendem o nosso berro. Fazemos parte da historia da humanidade, tanto da história natural como cultural. Pertencemos a mitologia. Quem não se lembra de Pasifae, a rainha, que se apaixonou por um touro branco saído da espuma do mar e por engenhosidade de Dédalos o possuiu. Deste estranho congresso nasceu o Minotauro, metade homem, metade touro, e que até hoje assusta os turistas no Labirinto.Também estamos no zodíaco . E no Wall Street. Mas para possuirmos a celebridade que temos tivemos de trabalhar muito de sol a sol desde os primórdios dos arados no Egito, servimos nos moinhos, nos carros de bois. Mas nunca nos deixa morrer de vclhice, cansados. Sempre estão prontos para nos matar e aproveitar o couro. Isto quando nos somos manadas do plantel de engorda, prontos para o matadouro.



Em uma província do sertão Nordestino, o Piauí, que se dedicou abundantemente a nossa criação no período colonial, tinha mais boi do que gente, de modo que um ovo de galinha era mais caro do que uma res. Pode acreditar meu pálido leitor. Caso não bote fé no que estamos dizendo e só consultar os anais da história econômica da província. Era tanto boi que nasceu a civilização do couro, dentro de um contexto bárbaro. Aí os homens, esses verdadeiros deuses, nossos criadores, que se alimentam de nosso sangue, de nossos ossos e tutanos, começaram a construir camas de couro, canecos de couro, portas de couro, chapéu de couro, perneiras de couro, gibão de couro, tamanco de couro, cinturão de couro, relho de couro, tabaqueira de couro, algibeira de couro. E haja couro de boi espichado e curtido.



Mas vamos passar para a nossa carne. E dessa iguaria que os homens gostam. Alimento nobre. Vitela. No começo quando éramos abatidos nos matadouros, sem muito higiene, ao ar livre, no meio das moscas e dos cachorros,a carne, era uma só, misturada com ossos. Não tinha este negocio de nos dissecar anatomicamente em várias partes qualificadas, em mais nobre, menos nobres. Como por exemplo: patim, posta gorda, cupim, alcatra, filé, contra filé, colchão mole, etc. Sem falar na rabada, na costela, na mão de vaca, nas vísceras para panelada. Hoje a maioria das pessoas que podem adoram a picanha os domingo nos churrascos.



Hoje a população do mundo está cada vez maior e não para de nos usar como alimento. E nos também estamos crescendo com eles. Mas o pior é que todo homem que come carne está condenando a vinte ou mais de seus semelhantes a passar fome. Com o incentivo do homem nos somos um grande predador. Para produzirmos um quilo de carne temos de ingerir pelo menos quinze quilos de alimentos vegetais - muitas vezes alimentos que poderiam ter sido consumidos diretamente pelo homem.



Ninguém sabe no que a pecuária vai resultar. O certo é que tem muito boi na linha. E vai ser grande o atropelo. Mas nos estamos dando muito trabalho para sermos criado. Às vezes precisamos até de ar condicionado, principalmente quando somos um bom reprodutor. Estes duram mais tempo e não vão para o cardápio do dia. Precisamos de uma mão de obra bem treinada para darmos resultado. Muito antibiótico, vacina, chip. Assistência diária com veterinário Não mais tão simples como nos velhos tempos em que se precisava apenas de um cavalo areado, um bom vaqueiro, com gibão, espora, chocalho, creolina para curar bicheira. Chuva para o capim crescer, e formar um bom pasto. O gado era crioulo, rijo, habilitado a enfrentar o agreste. Boi pé duro, de lombo liso, sem cupim e que agüentava carrapato e mutuca.



Hoje, a nossa criação, como já disse, carece de muita tecnologia, de cursos universitários. Matadouros e frigoríficos são coisas tão profiláticas que parece até que estamos em uma sala de hospital. Higiene absoluta. Morte limpa. Sei não. O que sei mesmo é que é um terror. Quando nos aproximamos do corredor da morte, muitos deles, morrem do coração. Um choque antecipado, antes da hecatombe.



De certo modo os homens tentam compensar o nossos sacrifício criando uma cultura em torno de nós, como se quisesse dignificar a nossa alma. Por isso mesmo adoram o bezerro de ouro. Viramos Bumba Meu Boi e outros bichos folclóricos por ai, e, sem o mínimo de pudor, entramos na intimidade familiar com os nossos cornos. E as vezes saímos vingados quando conseguimos matar um toureiro.



Quem sabe um dia vamos deixar de ser a boiada. Continuaremos apenas mito para o desafio dos homens. Eis finalmente algumas considerações de um animal ruminante que gostaria muito de falar para poder se defender da sanha faminta dos homens.

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