domingo, 10 de outubro de 2010

Os novos surdos




Edmar Oliveira



Engraçado. Antigamente quando a gente via alguém com um aparelho no ouvido era porque a pessoa devia ser surda. E aquele troço enfiado orelha a dentro era para fazer uma conexão com o mundo. Agora muita gente anda com uma coisa enfiada no ouvido, às vezes nos dois, é para se apartar do mundo. Deve ser um MP3, um iPod, ou um celular desses que já não servem só pra falar, mas tem música, rádio, cinema, TV, e-mail e outras funções de redes sociais, twitter e o diabo a quatro. E o sujeito sai lá desligadão, cantarolando, falando sozinho ou com alguém muito longe dali. Mas completamente surdo ao seu entorno.


Você já cruzou com alguém assim? Não há possibilidade de comunicação. O cara tá lá longe, pra dentro do seu mundo virtual, completamente absorvido por informações que não estão ao seu redor. Se faz de surdo para o mundo real e abre as asas para se transportar pra muito longe de onde se encontra. E perde o contorno com tudo que pode estar ao seu alcance.


Deve ser o mesmo cara que em casa entra dentro do computador e passa a interagir com o mundo virtual da internet, nas redes de comunicação, escrevendo numa língua estranha e abreviada que não se assemelha a nada que aprendemos na escola.


E os computadores portáteis ficaram menores e são carregados a tiracolo para restaurantes, bares, shoppings, aviões, onde a pessoa fica surda ao seu redor e passa a se comunicar com aquela maquininha de fazer doido. Já vi um cara tomando um chopp num bar enquanto conversava com seu computador. Só faltou pedir um chopp para a máquina, sua companheira de mesa de bar. Modernos celulares já vêm também com internet e o cara fica conectado vinte e quatro horas com os seus e-mails, youtube, facebook, orkutt a quatro.
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Tem algum sentido de vez em quando a gente se apartar do mundo. Lembro da minha mãe, que usara um aparelho de surdez durante a maior parte de sua vida. Quando descobri que era uma surdez capaz de ser corrigida cirurgicamente convenci a velha de fazer uma operação para se ver livre daquele troço enfiado no ouvido. Perguntando pelo resultado da cirurgia ouvia a reclamação de mãe: “menino, agora estou condenada a ouvir tudo. Uma droga. Antigamente quando não queria assunto com ninguém bastava desligar o aparelho”.
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Mas hoje em dia não se desliga do que está em volta para ficar surdo por completo. Não se escuta o ambiente e vai se escutar muito mais longe numa conversa com a máquina e não com gente. A propósito, este texto foi feito numa viagem de avião, onde não encontrei ninguém com quem conversar...
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ilustração: Gervásio Castro

4 comentários:

zan disse...

Já vivi uma experiência interessante há uns anos atrás em Brasília. Morava num sítio ali por Planaltina DF e Brasilinha. Pegava um ônibus que geralmente vinha lotado. Tinha na época um cd player portátil e vinha ligado numa música dos beatles ou rolling stones e comecei a chorar, lágrimas corriam pelo rosto... Meus ouvidos estavam ligados nos microfones... Com vergonha, de repente olhei ao redor achando que alguém poderia estar me vendo chorar naquela circunstâncias... As pessoas estavam tão pra dentro de si mesmas que não se deram conta da cena... (algumas também estavam ligadas num iphode qualquer desses aí...)

Sergival disse...

"UM SUSTO DA MULESTA"
Quando cheguei aqui no Rio de Janeiro, há quase cinco anos, observei nos meios de transporte coletivos da cidade inúmeras pessoas usando aqueles fones pequenos que mais parecem um "ponto" de apresentador. Depois observei outros utilizando um tipo de fone maior, ligados por um arco de metal que em minha terra chamam de "diadema". O interessante, é que ultimamente tenho visto alguns utilizando aqueles fones maiores de almofada tipo abafador, utilizados por operadores de som.
Certa feita cutuquei nos ombros de um destes pra pedir que saisse da frente da porta do Metrô que eu queria passar, e o cara tomou um susto da mulesta, derrubando tudo que trazia às mãos no piso da composição. Acho que ele tava lá no fim-do-mundo.

filipe com i disse...

hehehe, boa Edmar, senta o reio nese autismo pós-modeno de araque! adorei a ilustração do Gervásio - tá a tua cara. parabéns pela belíssima edição do Piauinauta. bjs
Filipe

Unknown disse...

Genial !!
Escolher a ausência , para mim seria ir para uma praia ou montanha, desertas e viver de ver o mundo natural.
Esse autismo de hoje, impulsionado pelas máquinas, interessa e interessa muiiiito aos podres poderes que imperam. Nada melhor que cego, surdo e mudo, para se governar com mentiras, facilmente implantandas em chips e o escambau a quatro.

Valeu, Edmar!!!!!

beijo poético

Cristina Bastos