domingo, 22 de março de 2015

O MESMO POR OUTRO ÂNGULO

Título:O MESMO POR OUTRO ÂNGULO
               Autor: Chimamanda Ngozi Adichie    
               Tradução:Julia Romeu
               Editora:Companhia das Letras
               513 págs.

               ::Luíz Horácio
               Florianópolis


As famigeradas oficinas literárias sobrevivem às custas dos incautos. É lá que eles costumam, incansavelmente, procurar a receita para escrever e fazer sucesso.  Tem receita para todo gosto.
Também tem os que misturam ingredientes e colocam o resultado à venda.
Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie é um exemplo dessas misturas, porém bem misturados. Se bem que em alguns pontos perceba-se o excesso de açúcar.
Americanah narra uma história de amor? Sim
A história de amor carrega todos os clichês das histórias de amor? Sim
Americanah conta uma história onde a internet tem papel significativo? Sim.Ifemelu é blogueira, faz abordagens gerais, mas  escreve principalmente sobre o , muitas vezes velado, racismo americano.
Deve ser lido como um romance de formação? Deve. Traz Ifemelu percebendo o que é a vida em sociedade, sobretudo em sociedade que não é a sua.
Como diário de viagem? Também. Estados Unidos, Nigéria, Inglaterra.
Forte presença do feminismo? Sim. Ainda menina Ifemelu  percebia algo de anormal ao observar os relacionamentos de homens e mulheres. Presenciara sua tia sendo tratada como mero objeto sexual ou doméstico.O leitor encontrará mais uma vez o nefasto politicamente correto? NãoTrata-se de um grande livro, uma grande narrativa? Em sua extensão, sim.Entre tanto déjà vu, nenhuma novidade para o leitor de James Baldwin, Chimamanda atira para todos os lados, mas  foge à regra e usa a irreverência para abordar o racismo, evita os clichês ao tratar da imigração, mais precisamente quando se ocupa do status do imigrado. Noves fora, menos extenso, Americanah manteria a intensidade, assim como veio a público diluiu a crítica numa calda exageradamente adocicada da previsível história de amor. Uma história de amor divertida e ao mesmo tempo dura em sua crítica social.
Americanah é o documento da via crúcis de Ifemelu. Ela deixa seu país natal, Nigéria, para realizar seus estudos na Filadélfia, Estados Unidos. A autora, que de boba não tem nada, sabe que sair, simplesmente sair, não rende uma história. Caso renda não atrairá  público. Isso mesmo, arguto leitor, Ifemelu deixa para trás o grande amor de sua vida, Obinze.
A autora dá início ao drama de Ifemelu, nigeriana que vive nos EUA, decide retonar ao seu país.  Enquanto ela reflete acerca de suas decisões a cabelereira , refaz seu penteado afro.Uma negra mexendo na cabeça de outra negra, como a despertá-la. Ifemelu pensa...pensa sobretudo naquilo que a espera.
E tem prosseguimento  o calvário de Ifemelu. Assim que desembarcou nos Estados Unidos, despertou para o mundo;   percebeu estar sozinha em terra estranha, estranhíssima. A seguir se dá conta que a cor de sua pele  carrega um sentido e uma importância jamais conferidos por ela. Só e diferente. Em termos, nem tão só e nem tão diferente. Ou melhor, não estará só, tão só, devido a essa diferença, a cor da pele. Ao leitor fica bem claro que até o momento do desembarque a protagonista não fazia a menor idéia de sua negritude, tampouco imaginava que naquele lugar existisse alguém de cor branca. Talvez a autora tenha usado isso apenas para causar impacto ao leitor. Ao leitor desatento.
Mas  também tem seu lado bom.
Americanah tem seu grande momento na   força das personagens, mas a ingenuidade de Ifemelu leva o leitor a imaginar uma pessoa alienadíssima ou arrancada de uma tribo selvagem. Fica a impressão de jamais ter chegado em sua terra de origem qualquer linha a informar da existência de preconceitos nos Estados Unidos e qualquer outro país. Quer um exemplo? Aqui está: dia desses um jornalista usou quipá durante dez horas, ele andou pelas ruas de Paris, extremamente hostilizado. Eu disse judeu. Imagine uma negra nos Estados Unidos. Não precisa, você sabe. Claro que sabe.
É exatemente nesse país, notabilizado também por seu racismo e discriminações que durante década e meia Ifemelu tentará viver como se americana fosse. Americana livre das segregações.
Entre muitos fracassos e alguns sucessos, Ifemelu se estabelece, mas acaba por refazer seus passos e aterrisa em seu país natal. Lembre, atento leitor, que existe a história de amor.Obinze ficou na Nigéria.
A decisão de Ifemelu é o ponto de partida, num primeiro momento o leitor poderá condená-la por isso, entender como intempestiva, logo perceberá se tratar de algo estudado, pensado, decisão que levou tempo até amadurecer. É exatamente  sobre esse pilar, o amadurecer da idéia do retorno, que se estrutura o romance de Chimamanda Ngozi Adichie.
A narrativa transcorre ora no presente ora no passado, o leitor se vê entre incessantes idas e vindas.Não fosse a “manjada”história de amor, Americanah não receberia tantos elogios mundo à fora. A maioria dos leitores de Chimamanda, não tenho dúvida, não suportaria uma história com essa característica, abordagem racial, sem esse lenitivo edulcorado.
Americanah, apesar das inúmeras possibilidades de fuga, é um romance introspectivo, complexo se levarmos em conta a questão central, ou quase central, a raça.

Os obstáculos que se apresentam, e os que são colocados, a uma pessoa estrangeira, além da cor da pele no caso de Ifemelu; falta de documentos, o périplo interminável em busca de um emprego, preconceitos de toda ordem, casamentos de ocasião, e sobretudo a solidão. Sentimento aguçado pela perda da identidade. E identidade não é algo que se obtenha de uma hora para outro.Principalmente por que a esses solitários caberá o subemprego. Mas Ifemelu ainda ama Obinze e pretende esquecê-lo. Submete-se a relacionamentos  que podem ser descritos como tentativa de autopunição. Castigo por um dia ter dado pouco valor a Obinze.Mas a conta parece ter chegado.


Obinze, por sua vez, segue a cartilha, faz de tudo para ter sucesso profissional, o que significa ter dinheiro, estar casado e não extravasar seus sentimentos.
Ifemelu é um reservatório de contradições, vive e supera situações assustadoras nos Estados Unidos, toma decisões que espantam  para longe, muito longe, qualquer possibilidade de ser feliz.


 Alguém capaz de deixar seu país na tentativa de vencer em terra estranha, ao aparentemente conseguir, decide voltar, cansada de viver apenas com a lembrança de um grande amor, Obinze é a motivação necessária. Vencedora ou derrotada? Qual a necessidade de colocar nesses termos? Nenhuma. Ifemelu simplesmente acreditou que sua felicidade tem nome certo e lugar conhecido.
O drama de Ifemelu, como ser negra num mundo de brancos? E o leitor se detém na história da protagonista.Mas a história é comum a qualquer negro que tenta viver com dignidade em sociedades racistas. Ifemelu ruma aos Estados Unidos, vai estudar Comunicação.No futuro lhe renderá um blog. O destino de Obinze é outro, Inglaterra, e sua experiência será bem pior que a de Ifemelu. Os problemas são iguais, o imigrante só tem a perder, da identidade à exclusão.Imigrante negro, bien sûr! E Obinze conhece a humilhação. Até que um dia retorna ao seu país. Ifelmelu e Obinze se reencontrarão, é claro.
Americanah  tem seus pontos altos, particularmente me agrada essas idas e vindas no tempo, mas a extensão, a lentidão, a repetição tiram o brilho. De qualquer maneira, com uma generosa dose de boa vontade, arrisco dizer que os méritos acabam por prevalecer. Mas nada de mais...longe...bem longe disso. Nada que não se encontre em Coetezee e que este não tenha tirado de Faulkner.


TRECHO
Ela fingiu que estava doente e faltou ao trabalho por três dias.Finalmente foi trabalhar com um afro muito curto, penteado demais e com óleo de mais. “Você está diferente”, disseram seus colegas, todos com certa hesitação.
“Significa alguma coisa?Tipo, alguma coisa política?”, perguntou Amy, que tinha um cartaz de Che Guevara na parede de seu cubículo.
“Não”, respondeu Ifemelu.
Na cafeteria, a srta. Margaret, a afro-americana peituda que servia as refeições - e que, além de dois seguranças, era a única outra negra na empresa - , perguntou: “Por que você  cortou o cabelo, meu bem? É lésbica?”.
“Não, srta. Margaret, pelo menos não por enquanto.”
Alguns anos depois, no dia em que Ifemelu pediu demissão, ela foi à cafeteria para seu último almoço. “Está indo embora?”, perguntou a srta. Margaret, chateada. “Que droga, meu bem. Eles precisam tratar o povo melhor aqui. Acha que seu cabelo foi parte do problema?”


AUTORA
Chimamanda Ngozi Adichie    nasceu em Enugu, na Nigéria, em 1977.
Autora dos romances, Meio sol amarelo (2008)  e Hibisco roxo (2011) publicados no Brasil pela Cia. das Letras.
Sua obra foi traduzida para mais de trinta línguas. Depois de ter recebido uma bolsa da Mac Arthur Foundation, Chimamanda vive entre Nigéria e Estados Unidos.






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