Título:O
MESMO POR OUTRO ÂNGULO
Tradução:Julia Romeu
Editora:Companhia das Letras
513 págs.
::Luíz
Horácio
Florianópolis
As famigeradas oficinas literárias
sobrevivem às custas dos incautos. É lá que eles costumam, incansavelmente,
procurar a receita para escrever e fazer sucesso. Tem receita para todo gosto.
Também tem os que misturam ingredientes
e colocam o resultado à venda.
Americanah,
de Chimamanda
Ngozi Adichie é um exemplo dessas misturas, porém bem misturados. Se bem que em
alguns pontos perceba-se o excesso de açúcar.
Americanah narra uma
história de amor? Sim
A história de amor carrega todos os
clichês das histórias de amor? Sim
Americanah conta uma história onde a
internet tem papel significativo? Sim.Ifemelu é blogueira, faz abordagens
gerais, mas escreve principalmente sobre
o , muitas vezes velado, racismo americano.
Deve ser lido como um romance de formação? Deve. Traz
Ifemelu percebendo o que é a vida em sociedade, sobretudo em sociedade que não é
a sua.
Como diário de viagem? Também. Estados Unidos,
Nigéria, Inglaterra.
Forte presença do
feminismo? Sim. Ainda menina Ifemelu
percebia algo de anormal ao observar os relacionamentos de homens e
mulheres. Presenciara sua tia sendo tratada como mero objeto sexual ou
doméstico.O leitor encontrará mais uma vez o nefasto politicamente correto? NãoTrata-se de
um grande livro, uma grande narrativa? Em sua extensão, sim.Entre tanto déjà
vu, nenhuma
novidade para o leitor de James Baldwin, Chimamanda atira para
todos os lados, mas foge à regra e usa a
irreverência para abordar o racismo, evita os clichês ao tratar da imigração,
mais precisamente quando se ocupa do status do imigrado. Noves fora, menos
extenso, Americanah manteria a intensidade, assim como veio a público diluiu a
crítica numa calda exageradamente adocicada da previsível história de amor. Uma
história de amor divertida e ao mesmo tempo dura em sua crítica social.
Americanah é o
documento da via crúcis de Ifemelu. Ela deixa seu país natal, Nigéria, para
realizar seus estudos na Filadélfia, Estados Unidos. A autora, que de boba não
tem nada, sabe que sair, simplesmente sair, não rende uma história. Caso renda
não atrairá público. Isso mesmo, arguto
leitor, Ifemelu deixa para trás o grande amor de sua vida, Obinze.
A autora dá início ao drama de Ifemelu, nigeriana que vive nos
EUA, decide retonar ao seu país.
Enquanto ela reflete acerca de suas decisões a cabelereira , refaz seu
penteado afro.Uma negra mexendo na cabeça de outra negra, como a despertá-la.
Ifemelu pensa...pensa sobretudo naquilo que a espera.
E tem prosseguimento o calvário de Ifemelu. Assim que desembarcou
nos Estados Unidos, despertou para o mundo;
percebeu estar sozinha em terra estranha, estranhíssima. A seguir se dá
conta que a cor de sua pele carrega um
sentido e uma importância jamais conferidos por ela. Só e diferente. Em termos,
nem tão só e nem tão diferente. Ou melhor, não estará só, tão só, devido a essa
diferença, a cor da pele. Ao leitor fica bem claro que até o momento do
desembarque a protagonista não fazia a menor idéia de sua negritude, tampouco
imaginava que naquele lugar existisse alguém de cor branca. Talvez a autora
tenha usado isso apenas para causar impacto ao leitor. Ao leitor desatento.
Mas
também tem seu lado bom.
Americanah tem seu
grande momento na força das
personagens, mas a ingenuidade de Ifemelu leva o leitor a imaginar uma pessoa
alienadíssima ou arrancada de uma tribo selvagem. Fica a impressão de jamais
ter chegado em sua terra de origem qualquer linha a informar da existência de
preconceitos nos Estados Unidos e qualquer outro país. Quer um exemplo? Aqui
está: dia desses um jornalista usou quipá durante dez horas, ele andou pelas
ruas de Paris, extremamente hostilizado. Eu disse judeu. Imagine uma negra nos
Estados Unidos. Não precisa, você sabe. Claro que sabe.
É exatemente nesse país, notabilizado
também por seu racismo e discriminações que durante década e meia Ifemelu
tentará viver como se americana fosse. Americana livre das segregações.
Entre muitos fracassos e alguns
sucessos, Ifemelu se estabelece, mas acaba por refazer seus passos e aterrisa
em seu país natal. Lembre, atento leitor, que existe a história de amor.Obinze
ficou na Nigéria.
A decisão de Ifemelu é o ponto de
partida, num primeiro momento o leitor poderá condená-la por isso, entender
como intempestiva, logo perceberá se tratar de algo estudado, pensado, decisão
que levou tempo até amadurecer. É exatamente
sobre esse pilar, o amadurecer da idéia do retorno, que se estrutura o romance
de Chimamanda
Ngozi Adichie.
A narrativa transcorre ora no presente
ora no passado, o leitor se vê entre incessantes idas e vindas.Não fosse a
“manjada”história de amor, Americanah não receberia tantos elogios mundo à
fora. A maioria dos leitores de Chimamanda, não tenho dúvida, não suportaria
uma história com essa característica, abordagem racial, sem esse lenitivo
edulcorado.
Americanah,
apesar
das inúmeras possibilidades de fuga, é um romance introspectivo, complexo se
levarmos em conta a questão central, ou quase central, a raça.
Os obstáculos que se apresentam, e os
que são colocados, a uma pessoa estrangeira, além da cor da pele no caso de
Ifemelu; falta de documentos, o périplo interminável em busca de um emprego,
preconceitos de toda ordem, casamentos de ocasião, e sobretudo a solidão.
Sentimento aguçado pela perda da identidade. E identidade não é algo que se
obtenha de uma hora para outro.Principalmente por que a esses solitários caberá
o subemprego. Mas Ifemelu ainda ama Obinze e pretende esquecê-lo. Submete-se a
relacionamentos que podem ser descritos
como tentativa de autopunição. Castigo por um dia ter dado pouco valor a
Obinze.Mas a conta parece ter chegado.
Obinze, por sua vez, segue a cartilha,
faz de tudo para ter sucesso profissional, o que significa ter dinheiro, estar
casado e não extravasar seus sentimentos.
Ifemelu é um reservatório de
contradições, vive e supera situações assustadoras nos Estados Unidos, toma
decisões que espantam para longe, muito
longe, qualquer possibilidade de ser feliz.
Alguém capaz de deixar seu país na tentativa
de vencer em terra estranha, ao aparentemente conseguir, decide voltar, cansada
de viver apenas com a lembrança de um grande amor, Obinze é a motivação
necessária. Vencedora ou derrotada? Qual a necessidade de colocar nesses
termos? Nenhuma. Ifemelu simplesmente acreditou que sua felicidade tem nome
certo e lugar conhecido.
O drama de Ifemelu, como ser negra num
mundo de brancos? E o leitor se detém na história da protagonista.Mas a
história é comum a qualquer negro que tenta viver com dignidade em sociedades
racistas. Ifemelu ruma aos Estados Unidos, vai estudar Comunicação.No futuro
lhe renderá um blog. O destino de Obinze é outro, Inglaterra, e sua experiência
será bem pior que a de Ifemelu. Os problemas são iguais, o imigrante só tem a
perder, da identidade à exclusão.Imigrante negro, bien sûr! E Obinze conhece a
humilhação. Até que um dia retorna ao seu país. Ifelmelu e Obinze se
reencontrarão, é claro.
Americanah tem seus pontos altos, particularmente me
agrada essas idas e vindas no tempo, mas a extensão, a lentidão, a repetição
tiram o brilho. De qualquer maneira, com uma generosa dose de boa vontade,
arrisco dizer que os méritos acabam por prevalecer. Mas nada de
mais...longe...bem longe disso. Nada que não se encontre em Coetezee e que este
não tenha tirado de Faulkner.
TRECHO
Ela fingiu que estava doente e faltou ao
trabalho por três dias.Finalmente foi trabalhar com um afro muito curto,
penteado demais e com óleo de mais. “Você está diferente”, disseram seus
colegas, todos com certa hesitação.
“Significa alguma coisa?Tipo, alguma
coisa política?”, perguntou Amy, que tinha um cartaz de Che Guevara na parede
de seu cubículo.
“Não”, respondeu Ifemelu.
Na cafeteria, a srta. Margaret, a
afro-americana peituda que servia as refeições - e que, além de dois
seguranças, era a única outra negra na empresa - , perguntou: “Por que
você cortou o cabelo, meu bem? É
lésbica?”.
“Não, srta. Margaret, pelo menos não por
enquanto.”
Alguns anos depois, no dia em que
Ifemelu pediu demissão, ela foi à cafeteria para seu último almoço. “Está indo
embora?”, perguntou a srta. Margaret, chateada. “Que droga, meu bem. Eles
precisam tratar o povo melhor aqui. Acha que seu cabelo foi parte do problema?”
AUTORA
Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em Enugu, na Nigéria, em 1977.
Autora dos romances, Meio sol amarelo (2008)
e Hibisco roxo (2011)
publicados no Brasil pela Cia. das Letras.
Sua obra foi traduzida para mais de
trinta línguas. Depois de ter recebido uma bolsa da Mac Arthur Foundation,
Chimamanda vive entre Nigéria e Estados Unidos.
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