domingo, 22 de março de 2015

Lembranças do passado


Anistiada, advogada presa na ditadura no Piauí desabafa: "minha alma já doeu muito"

Ela foi perseguida durante a Ditadura Militar de 1964 e foi a única mulher presa no Piauí sob a acusação de comunismo e subversão. Sentiu na pele o peso das humilhações, passou fome, perdeu empregos e amigos e até o direito de se reunir com a família. Iracema dos Santos Rocha da Silva tem hoje 87 anos e é um grande exemplo de Mulher Piauiense, com muita história para contar.

"Eu sempre acreditei que a mulher tem que ter os mesmos direitos dos homens. Fui a favor da Revolução Industrial e desde então fui perseguida e censurada. A primeira vez que passei por isso foi durante um discurso no rádio, ao lado de Petrônio Portela. Cortaram a minha palavra. Dias depois, fui presa e vivi os piores pesadelos", relata Iracema.

Advogada, professora, filósofa e jornalista. Não faltam profissões para uma mulher a frente de seu tempo, que incitava multidões e mexia com a opinião pública em pleno golpe militar. Os traumas da época estão marcados no jeito de falar de Iracema, nas lágrimas que insistem em ainda cair, mesmo após tanto tempo e nas lembranças dolorosas que a rondam.

O massacre da Ditadura

Com a ajuda da filha mais velha, Eliane Maranhão da Silva Thé, a advogada relata com a exatidão de quem viveu tudo isso ainda ontem, o momento de sua prisão e os dias trancada no 25º Batalhão de Caçadores:

"Em 1964, eu morava ali na avenida Campos Sales. Um dia, um jeep com três militares armados se aproximou. Quando eles desceram do carro, entraram na minha casa e disseram que me levariam. Pedi para Eliane avisar ao meu marido. Quando me colocaram no carro, os outros vasculharam a minha casa"- Iracema, presa política da Ditadura Militar

"Os militares vasculharam por todos os cantos. Olharam debaixo das cadeiras, nas paredes, nos quartos e subiram para vistoriar a caixa d'água. Até no galinheiro eles olharam. Levaram todos os livros e jornais que encontraram. Diziam que aquilo era coisa de comunista" - Eliane, filha mais velha de Iracema

"Quando cheguei ao 25º BC, me colocaram sentada de costas para a porta, em um tamborete, no escuro. Desse modo, eu não conseguia ver quem estava se aproximando para o interrogatório. Eles queriam que eu confirmasse que era comunista, me humilharam. Diziam que eu não merecia viver, que tinha que ter cuidado dos meus filhos e esquecido a política. Eu respondia apenas que cuidava da minha família, sim, mas também da democracia e do direito da mulher nas horas vagas" - Iracema

"A mamãe ficou incomunicável. Nem nós, os filhos, nem o marido, podíamos visitá-la. Foi quase um mês nessa agonia. Deixavam ela sem comer por dias. Foi aí que conseguimos um soldado militar que gostava dela e aceitou levar comida escondida na farda. Era coisinha pouca, mas pelo menos ela poderia comer" - Eliane

"Às vezes, eles me deixavam dias sem comer e depois chegava uma pessoa e dizia que iria me fazer uma comida especial, muito gostosa. Nesse dia, eu não comia. Eu tinha medo de ser envenenada, de me matarem e sumirem com meu corpo" - Iracema

Desespero

Do lado de fora do quartel, mulheres de vários municípios piauienses acampavam na porta do batalhão. À frente da luta a favor dos direitos da mulher, Iracema foi presidente da Liga Feminina Trabalhista, da Liga Operária, da Liga das Camponesas e da Frente Mobilização Popular. Era respeitada e admirada em todo o Estado.

"E acreditamos que foi isso que impediu a morte da mamãe. Os militares teriam que dar uma satisfação para a sociedade se ela desaparecesse. A presença de mais de 500 mulheres acampadas na frente do batalhão dificultava que ela fosse transportada para outro local", destacou Eliane, que na época tinha 16 anos.

Mobilização feminina ajudou Iracema a ser libertada do 25º BC

Quando Iracema foi finalmente liberada do 25º BC, teve que obedecer a duras normas - não podia se reunir com mais de três pessoas, mesmo sendo da família, era vigiada dia e noite, os amigos eram interrogados com frequência e os filhos eram perseguidos até no caminho para a escola.

"Eu perdi muitos amigos, porque as pessoas tinham medo de serem presas por me visitar. Eu não podia receber um telefonema e se eu me sentasse na sala com minha família, os militares diziam que era uma reunião, que era conspiração", lembrou a militante.

Iracema ainda foi presa duas vezes depois e permaneceu sob as algemas da ditadura por três a quatro dias em cada uma delas. Por vezes, chegou a perder a noção de tempo, já que ficava no sempre no escuro.

"Eu resumiria tudo isso em uma palavra: desespero. Eu não sabia como me livrar daquilo. Eu não merecia passar por tudo. Eu lutava pela mulher porque não tínhamos direito à palavra, ao sentimento. Éramos escravas de senzala" - Iracema

Família perseguida

Casada com José Maranhão Ferreira da Silva, que este mês completa 99 anos, Iracema teve quatro filhos. Em 1964, três deles já haviam nascido e ver a família sofrendo os reflexos dessa perseguição aumentava ainda mais o desespero da professora.

“A gente estudava no Liceu Piauiense e no caminho para lá, éramos seguidos por soldados do 25º BC. As pessoas na rua gritavam: ‘Lá se vão os filhos da comunista’. Os professores não repreendiam por medo. Só dois deles nos defenderam, mas fomos realmente isolados da vida social. Até quando saíamos para brincar, éramos seguidos pelos militares”, conta Eliane.

Vida de Iracema – um livro

Apesar de todos os acontecimentos, Iracema não desistiu da luta. Ela se candidatou a cargos públicos em praticamente todas as eleições, mas, pelo sistema da época, conhecido como Mapismo (no qual as cédulas de votação eram facilmente alteradas), nunca havia conseguido se eleger.

“Em 1970 consegui ser eleita deputada federal, mas me cassaram. Mesmo assim, fui recebida por Ulysses Guimarães [político que abrigou os opositores do Regime Militar e foi presidente do Congresso Nacional] em Brasília, com todas as honras de uma deputada”, conta.

Iracema tinha o sonho de se formar em Direito, mas pelas pressões sociais, só lhe foi permitido se formar em normalista (professora). Depois de casada, pediu ao marido para estudar Direito, mas acabou entrando na faculdade de Filosofia, adiando novamente o sonho.

“Só consegui me formar em Direito em 1953, quando minhas filhas já estavam grandes, prestando vestibular. Em 1984, passei em primeiro lugar no concurso para juiz. Depois de muita luta, deixaram eu assumir, mas me mandaram para Corrente. Aí decidi não ir, porque tinha um filho que ainda era criança e eu queria que ele estudasse na capital. Além disso, eu não nasci para ser juíza, porque eu teria que apenas decidir. Eu queria mesmo era brigar, era defender direitos”, disse.

Na casa da avenida Campos Sales, que amargou tantos momentos de tristeza na Ditadura, hoje funciona o escritório de Iracema, que ainda trabalha, mesmo aos 87 anos. “Minha filha [Eliane] tomou de conta da maioria dos clientes, mas eu ainda atendo alguns, que fazem questão de que eu conduza os processos. Não penso em parar de trabalhar, porque eu lutei por isso. Lutei para ser advogada. Trabalho por amor”, completa.

Aos 87 anos, Iracema ainda trabalha diariamente em seu escritório de advocacia

A advogada está finalizando um livro no qual relatará toda sua vida, desde criança até os dias atuais. A obra ainda não tem título, mas deve ser publicada ainda este ano.

Anistia?

Em 4 de março de 2015 ela recebeu um documento do Ministério da Justiça dando-lhe anistia pela época da Ditadura. A advogada vai receber uma indenização de R$ 150 mil pelos abusos vividos. 


“Eu acho justo, mas essa justeza me dói. Eu não deveria ter sofrido tudo isso. Eu me sinto confortável pelos meus filhos e filhas, mas minha alma já doeu muito. E eu não acho que anistia seja uma palavra correta para isso. Anistia é perdão e eu não preciso ser perdoada. Eu entrei para a política pensando e agindo sozinha e fui massacrada por isso. Mas se eu voltasse a ser aquela menininha, faria tudo de novo, mesmo sabendo que sofreria”, conclui Iracema.




___________________________
garimpo de Kenard Kruel

Nenhum comentário: