domingo, 8 de março de 2015

Declaração de amor


(Edmar Oliveira)

A primeira vez que vim ao Rio, Estácio de Sá já tinha morrido há muito tempo. Também não vi a pedra da primeira edificação dos brancos na confluência do Rio Carioca com o mar, aos pés do morro da viúva. Uma grande pedra remanescente da construção, que o padre da igreja a Santíssima Trindade jura que estava nos fundos da igreja, justo na confluência das Ruas Princesa Januária com Senador Euzébio no Flamengo, sumiu tal quais as vigas da Perimetral. Não estava no cais quando o reino de Portugal foi transferido para a Praça XV, depois de ser posto a correr por Napoleão. O Pedro I já tinha gritado a independência e comido a Marquesa de Santos, sua irmã e outras moçoilas que apareciam na corte. Tive boa impressão do Imperador Pedro II, mas a república veio de pijama, montada no pangaré de Deodoro.  Nem cheguei a ver a derrubada do Morro do Castelo, apesar de ter acompanhado as reportagens misteriosas que o Lima Barreto fez para um jornal carioca. Também não assisti a abertura da Presidente Vargas com o prefeito derrubando os barracos para livrar os pobres da febre amarela. Osvaldo Cruz matou os mosquitos e Pereira Passos espantou os pobres para que trepassem nos morros ou desbravassem o sertão carioca. E o Lacerda já tinha furado os túneis que facilitaram a mobilidade urbana da zona sul. Não ouvi o tiro que Getúlio deu no próprio peito numa noite de agosto no Palácio do Catete. Nem o Palácio vazio, quando Juscelino inaugurou um delírio no planalto central. Os bondes já tinham saído dos trilhos, mas os de Santa Teresa ainda enunciavam esse meio de transporte. A Esplanada do Castelo já tinha tirado a Igreja de Santa Luzia da beira-mar e o Aterro do Flamengo empurrado o mar, que vinha até o Castelinho, para cobrir uma grande parte da baia de Guanabara. O Andreazza tinha acabado de inaugurar uma ponte de treze quilômetros que juntava cariocas e araribóias, enterrando uns operários nas pilastras de concreto. O Rio já tinha mudado.

Mas eu mudei muito mais nesse tempo que vivo aqui. Cheguei com 25 anos saindo do nordeste escaldante para as promessas do sul maravilha. Tenho mais tempo na cidade adotada do que na terra em que nasci. Quando o Rio fez quatrocentos anos comemorei de longe, sabendo que vinha. Nos quatrocentos e cinquenta comemoro um tempo nas batalhas que conquistei. O Rio não é só o Cristo, que recebe de braços abertos. Ele abraça afetuoso e te chama pra tomar um chope, em pé, num bunda de fora qualquer de suas esquinas. Ele não reclama se tu estás de chinelo de dedo, camiseta e bermudão. Trata de assuntos sérios mesmo se você estiver vestido à vontade. Suas meninas são muito simples e informais com uma beleza dourada que só o Rio lhes dá. Nunca as vejo com a deselegância discreta das paulistas ou das de minha terra. Acho que ficam mais belas à beira da praia, nos botequins, não importando se sol já se foi.


É necessário declarar amor ao Rio. Uma cidade que inventei pra mim, como já dizia o poeta triste ao chegar por essas bandas. E mesmo maltratada por tantos séculos, a cidade mantém as suas curvas naturais, tais quais Estácio de Sá avistou quando a inaugurou em março num dia de chuva. Fosse um dia de sol o índio tinha despido o português, como queria Oswald de Andrade. Mas quando o sol chegou destacou as curvas de sua geografia erótica que encanta os estrangeiros desde Estácio de Sá.

desenhos do Rio: Fábio Araujo - Graphic Designer

Nenhum comentário: