(Edmar Oliveira)
A primeira vez que vim ao Rio, Estácio de Sá já tinha morrido
há muito tempo. Também não vi a pedra da primeira edificação dos brancos na
confluência do Rio Carioca com o mar, aos pés do morro da viúva. Uma grande
pedra remanescente da construção, que o padre da igreja a Santíssima Trindade
jura que estava nos fundos da igreja, justo na confluência das Ruas Princesa
Januária com Senador Euzébio no Flamengo, sumiu tal quais as vigas da Perimetral. Não
estava no cais quando o reino de Portugal foi transferido para a Praça XV,
depois de ser posto a correr por Napoleão. O Pedro I já tinha gritado a
independência e comido a Marquesa de Santos, sua irmã e outras moçoilas que
apareciam na corte. Tive boa impressão do Imperador Pedro II, mas a república
veio de pijama, montada no pangaré de Deodoro. Nem cheguei a ver a derrubada do Morro do
Castelo, apesar de ter acompanhado as reportagens misteriosas que o Lima
Barreto fez para um jornal carioca. Também não assisti a abertura da Presidente
Vargas com o prefeito derrubando os barracos para livrar os pobres da febre
amarela. Osvaldo Cruz matou os mosquitos e Pereira Passos espantou os pobres
para que trepassem nos morros ou desbravassem o sertão carioca. E o Lacerda já
tinha furado os túneis que facilitaram a mobilidade urbana da zona sul. Não
ouvi o tiro que Getúlio deu no próprio peito numa noite de agosto no Palácio do
Catete. Nem o Palácio vazio, quando Juscelino inaugurou um delírio no planalto
central. Os bondes já tinham saído dos trilhos, mas os de Santa Teresa ainda
enunciavam esse meio de transporte. A Esplanada do Castelo já tinha tirado a
Igreja de Santa Luzia da beira-mar e o Aterro do Flamengo empurrado o mar, que
vinha até o Castelinho, para cobrir uma grande parte da baia de Guanabara. O
Andreazza tinha acabado de inaugurar uma ponte de treze quilômetros que juntava
cariocas e araribóias, enterrando uns operários nas pilastras de concreto. O
Rio já tinha mudado.
Mas eu mudei muito mais nesse tempo que vivo aqui. Cheguei
com 25 anos saindo do nordeste escaldante para as promessas do sul maravilha.
Tenho mais tempo na cidade adotada do que na terra em que nasci. Quando o Rio
fez quatrocentos anos comemorei de longe, sabendo que vinha. Nos quatrocentos e
cinquenta comemoro um tempo nas batalhas que conquistei. O Rio não é só o
Cristo, que recebe de braços abertos. Ele abraça afetuoso e te chama pra tomar
um chope, em pé, num bunda de fora qualquer de suas esquinas. Ele não reclama
se tu estás de chinelo de dedo, camiseta e bermudão. Trata de assuntos sérios
mesmo se você estiver vestido à vontade. Suas meninas são muito simples e
informais com uma beleza dourada que só o Rio lhes dá. Nunca as vejo com a
deselegância discreta das paulistas ou das de minha terra. Acho que ficam mais
belas à beira da praia, nos botequins, não importando se sol já se foi.
É necessário declarar amor ao Rio. Uma cidade que inventei
pra mim, como já dizia o poeta triste ao chegar por essas bandas. E mesmo
maltratada por tantos séculos, a cidade mantém as suas curvas naturais, tais
quais Estácio de Sá avistou quando a inaugurou em março num dia de chuva. Fosse
um dia de sol o índio tinha despido o português, como queria Oswald de Andrade.
Mas quando o sol chegou destacou as curvas de sua geografia erótica que encanta
os estrangeiros desde Estácio de Sá.
desenhos do Rio: Fábio Araujo - Graphic Designer |
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