Luiz Horácio
Logo no começo de É
isto um homem?, Primo Levi é informado que de onde ele
está só é possível sair por um lugar, a chaminé.
O que tem de violência contida naquelas poucas palavras revela o
talento indiscutível da humanidade, sua maior propensão:provocar sofrimentos em
todos os sentidos, em todos momentos da história, em todos lugares tivemos a
violência, o homem impingindo o mal a outro homem.
Talento difundido por todos os campos da atuação humana, da agressão
ao meio ambiente à perseguição religiosa; do holocausto à escravidão; da
pedofilia às artes, e em qualquer outro meio de expressão humana, uma partida
de futebol, uma breve passagem de olhos pela tv câmara, tv senado. Somos
violentos, a quantidade de lixo que produzimos é a comprovação de nossa
essência.
Também, pacifista leitor, vale a pena parar um pouco em frente a sua
casa, seu prédio e reparar na quantidade de mendigos que viram e reviram as
latas de nossos restos em busca de alimentos. Eles são frutos da violência de
nossos governantes, essa impune horda maléfica.
Mas falemos de violência na literatura. O professor Jaime Ginzburg
escreveu literatura,
violência e melancolia
com o propósito de discutir a violência presente na literatura. Para
isso oferece dois caminhos: pelo primeiro
espera que circulem acadêmicos e suas produções acerca do tema,
acredita-se que para isso utilizem conhecimentos da teoria literária,
filosofia, ciências sociais, psicanálise, política e história. Quer dizer, usar as mesmas ferramentas do
mestre. Pela outra via sugere um exame
das relações entre o passado e o futuro e a consequente presença, cada vez mais
diversificada, da violência na sociedade
atual.
Ginzburg argumenta com Hamlet, de William
Shakespeare; Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; São Bernardo, de
Graciliano Ramos ,contos de Primo Levi, entre
outros.
Os títulos arrolados pelo autor servem como convite ao leitor,
convite a pensar sobre as formas com que a morte é apresentada na literatura.
Por mais que o autor tente nos fazer entender acerca da necessidade daquele ato
extremo,e para isso utiliza Freud, a
compreensão da violência passa muito além de qualquer teoria.
Ginzburg cita Hamlet, de William Shakespeare, e
algumas obras de nossa literatura e seus diferentes motivadores
de violência.
Em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, um pai
mata a própria filha, esta teria uma relação incestuosa com o irmão. O pai
representa a lei.Ele julga, ele condena. Não há defesa.Defesa da honra é a
justificativa para a violência.
Cláudio é o tio de Hamlet, mata o irmão para ficar com o trono, aqui a
ambição é move o criminoso.
Grande sertão;
veredas, de João Guimarães Rosa, apresenta outro tipo de violência, não tem
relação nenhuma com os motivos citados anteriormente.Trata-se de uma violência
que nasce com a condição humana, a condição humana do sertão.Conforme Riobaldo:
“Que quando eu estava
assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar, querendo
pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho,
soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia
sentindo ódio delas, uma por uma,do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais
minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem
queixa”
A violência da qual o autor se debruça em literatura, violência
e melancolia resume-se a agressão física de um ser
humano por outro. Ginzburg credita esse ato ao conceito de melancolia. Bom,
aqui o assunto merece conhecedor dos meandros da mente e não é , nem de longe,
o caso deste aprendiz que ora é merecedor de sua atenção.
Essa confissão, no entanto, não implica concordância.
Seria essa melancolia o fator desencadeador da violência nazista?
Não creio. Mas tentemos outra: quem sabe a melancolia justifique o apartheid na
África do Sul, ou então mais uma, partiriam dessa mesma arma as balas que
mataram Martin Luther King, John Kenedy, e outra, estaria a melancolia ao
volante do carro que arrastou o garoto João Hélio, no Rio de Janeiro?
Foi a melancolia aliado ao medo
que, em 1940, levou Walter Benjamin ao suicídio no dia 27 de setembro, em Port Bou, na Catalunia,
assim que percebeu ser impossível atravessar a fronteira franco-espanhola.A
vida de Benjamin pode ser apresentada como expoente do fracasso, dor e
sofrimento. Ao lermos WB encontramos vários episódios onde exemplos de perda
são citados. O caso WB serve como exemplo
da violência fruto da melancolia. Cabe lembrar que não é um exemplo
extraído de páginas literárias. Violência não permite explicações,
justificativas, sofisticadas.Violência é o homem.
Ao final do livro o autor pergunta: “Pode a literatura fazer
alguma coisa contra a violência? E responde: Este livro
defende que sim. Enfaticamente, na verdade. A convivência com a literatura
permite criar um repertório de elementos - imagens, idéias, posições, relatos,
exemplos - que interessa para a
constituição de orientações éticas
individuais e coletivas. Esse repertório, em sua variedade, contribui para um
aberto e diversificado debate. A qualidade desse debate é única, porque sua
matéria são textos polissêmicos, abertos, cujas possibilidades de interpretação
são renovadas constantemente.”
A qualidade do trabalho de Ginzburg se evidencia ao provocar o debate, junte-se o
caráter didático da obra e a curiosidade que desperta no leitor no sentido de
reler as obras citadas no intuito de comparar suas conclusões às do autor. Não
é pouco, convenhamos. Mas também não é o ideal.
Este aprendiz, embora os aspectos citados acima, discorda quando o
autor afirma que seu livro pode fazer alguma coisa contra a violência.
Qual violência? A do dia - a - dia? A violência que nasce com o
homem, e, infelizmente, não morre com ele? Não acredito. Nem mesmo um exército
de Mandelas seria capaz.
Talvez a violência na literatura? Espero que a intenção não seja
esta. Imagine, paciente leitor, É isto um homem? sem
a violência, em todos seus disfarces, o que escreveria Primo Levi? E o que restaria da Ilíada, se Homero fosse obrigado a narrar sem descrever as cenas onde cabeças são arrancas, barrigas
são abertas? A violência contida na Ilíada continuará
atravessando séculos, inspirando, entre outros, nossos locutores esportivos.
Pensou Galvão Bueno, não vale, esse é hors-concour.
Gargantua, de Rabelais, sem os conhecimentos médicos do autor a serviço da
violência, teria chegado aos nossos dias? Chegado com a mesma força, para não
dizer violência narrativa, descritiva?
Não, não acredito em poder outro que não o da violência capaz de
abrandar a violência. Um livro pode, e aqui mais uma vez elogio o trabalho de
Ginzburg, incrementar o debate, nada além.
Mais importante é o uso da violência, da melancolia, pelas
artes de modo geral e pela literatura
no caso em questão.
Louis Aragon em seu poema Front Rouge sugere o
assassinato de policiais
«Pliez
les réverbères comme des fétus de pailles
Faites valser les kiosques les bancs les fontaines
Wallace
Descendez les flics
Camarades
descendez les flics
Plus loin plus loin vers l'ouest où dorment
les enfants riches et les putains de première classe
Dépasse la Madeleine Prolétariat
Que ta fureur balaye l'Élysée
Tu as bien droit au Bois de Boulogne en semaine
Un jour tu feras sauter l'Arc de triomphe
Outro exemplo de uso da
violência a serviço da grande literatura você encontrará em Les Fleurs du mal, de Charles Baudelaire. Vá ao poema Le Vin de l'assassin:
ma femme est morte, je suis libre !
Je puis boire tout mon soûl.
Lorsque je rentrai sans un sou
Ses cris me déchiraient la fibre.
[...] /Je l'ai jetée au fond d'un puits,
Et j'ai même poussé sur elle
Tous les pavés de la margelle. [...]
Ecraser ma tête coupable,
A violência aproveitada por um escritor talentoso, sem ser gratuita,
será plenamente justificada e terá boa acolhida. Trata-se da mesma violência aproveitada
por Francis Bacon em seus quadros, a mesma violência utilizada por seja lá quem
for que escreveu a Bíblia, Bíblias...e muito bem aproveitada, sobretudo pela
igreja católica que sobrevive graças ao eterno combate entre o bem e o mal.
Tudo regiamente pago, bien sûr!
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