domingo, 18 de agosto de 2013

literatura, violência e melancolia


Luiz Horácio
 
Logo no começo de É isto um homem?, Primo Levi é informado que de onde ele está só é possível sair por um lugar, a chaminé.

O que tem de violência contida naquelas poucas palavras revela o talento indiscutível da humanidade, sua maior propensão:provocar sofrimentos em todos os sentidos, em todos momentos da história, em todos lugares tivemos a violência, o homem impingindo o mal a outro homem.

Talento difundido por todos os campos da atuação humana, da agressão ao meio ambiente à perseguição religiosa; do holocausto à escravidão; da pedofilia às artes, e em qualquer outro meio de expressão humana, uma partida de futebol, uma breve passagem de olhos pela tv câmara, tv senado. Somos violentos, a quantidade de lixo que produzimos é a comprovação de nossa essência.

Também, pacifista leitor, vale a pena parar um pouco em frente a sua casa, seu prédio e reparar na quantidade de mendigos que viram e reviram as latas de nossos restos em busca de alimentos. Eles são frutos da violência de nossos governantes, essa impune horda maléfica.

Mas falemos de violência na literatura. O professor Jaime Ginzburg escreveu literatura, violência e melancolia  com o propósito de discutir a violência presente na literatura. Para isso oferece dois caminhos: pelo primeiro  espera que circulem acadêmicos e suas produções acerca do tema, acredita-se que para isso utilizem conhecimentos da teoria literária, filosofia, ciências sociais, psicanálise, política e história.  Quer dizer, usar as mesmas ferramentas do mestre. Pela outra via  sugere um exame das relações entre o passado e o futuro e a consequente presença, cada vez mais diversificada, da  violência na sociedade atual.

 

Ginzburg argumenta com Hamlet, de William Shakespeare; Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; São Bernardo, de Graciliano Ramos ,contos de Primo Levi, entre  outros.

Os títulos arrolados pelo autor servem como convite ao leitor, convite a pensar sobre as formas com que a morte é apresentada na literatura. Por mais que o autor tente nos fazer entender acerca da necessidade daquele ato extremo,e para isso utiliza  Freud, a compreensão da violência passa muito além de qualquer teoria.

Ginzburg cita Hamlet, de William Shakespeare, e  algumas obras de nossa literatura e seus diferentes  motivadores  de violência.

Em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, um pai mata a própria filha, esta teria uma relação incestuosa com o irmão. O pai representa a lei.Ele julga, ele condena. Não há defesa.Defesa da honra é a justificativa para a violência.

Cláudio é o tio de Hamlet, mata o irmão para ficar com o trono, aqui a ambição é move o criminoso.

Grande sertão; veredas, de João Guimarães Rosa,  apresenta outro tipo de violência, não tem relação nenhuma com os motivos citados anteriormente.Trata-se de uma violência que nasce com a condição humana, a condição humana do sertão.Conforme Riobaldo:

“Que quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar, querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma,do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa”

A violência da qual o autor se debruça em literatura, violência e melancolia resume-se a agressão física de um ser humano por outro. Ginzburg credita esse ato ao conceito de melancolia. Bom, aqui o assunto merece conhecedor dos meandros da mente e não é , nem de longe, o caso deste aprendiz que ora é merecedor de sua atenção.

Essa confissão, no entanto, não implica concordância.

Seria essa melancolia o fator desencadeador da violência nazista? Não creio. Mas tentemos outra: quem sabe a melancolia justifique o apartheid na África do Sul, ou então mais uma, partiriam dessa mesma arma as balas que mataram Martin Luther King, John Kenedy, e outra, estaria a melancolia ao volante do carro que arrastou o garoto João Hélio, no Rio de Janeiro?

Foi a melancolia aliado ao medo  que, em 1940, levou Walter Benjamin ao suicídio no dia  27 de setembro, em Port Bou, na Catalunia, assim que percebeu ser impossível atravessar a fronteira franco-espanhola.A vida de Benjamin pode ser apresentada como expoente do fracasso, dor e sofrimento. Ao lermos WB encontramos vários episódios onde exemplos de perda são citados. O caso WB serve como exemplo  da violência fruto da melancolia. Cabe lembrar que não é um exemplo extraído de páginas literárias. Violência não permite explicações, justificativas, sofisticadas.Violência é o homem.

Ao final do livro o autor pergunta: “Pode a literatura fazer alguma coisa contra a violência? E responde: Este livro defende que sim. Enfaticamente, na verdade. A convivência com a literatura permite criar um repertório de elementos - imagens, idéias, posições, relatos, exemplos - que interessa para  a constituição  de orientações éticas individuais e coletivas. Esse repertório, em sua variedade, contribui para um aberto e diversificado debate. A qualidade desse debate é única, porque sua matéria são textos polissêmicos, abertos, cujas possibilidades de interpretação são renovadas constantemente.”

A  qualidade  do trabalho de Ginzburg  se evidencia ao provocar o debate, junte-se o caráter didático da obra e a curiosidade que desperta no leitor no sentido de reler as obras citadas no intuito de comparar suas conclusões às do autor. Não é pouco, convenhamos. Mas também não é o ideal.

Este aprendiz, embora os aspectos citados acima, discorda quando o autor afirma que seu livro pode fazer alguma coisa contra a violência.

Qual violência? A do dia - a - dia? A violência que nasce com o homem, e, infelizmente, não morre com ele? Não acredito. Nem mesmo um exército de Mandelas seria capaz.

Talvez a violência na literatura? Espero que a intenção não seja esta. Imagine, paciente leitor, É isto um homem? sem a violência, em todos seus disfarces, o que escreveria Primo Levi?  E o que restaria da Ilíada, se Homero fosse obrigado a narrar sem descrever  as cenas onde cabeças são arrancas, barrigas são abertas? A violência contida na Ilíada continuará atravessando séculos, inspirando, entre outros, nossos locutores esportivos. Pensou Galvão Bueno, não vale, esse é hors-concour.

 

Gargantua, de Rabelais, sem os conhecimentos médicos do autor a serviço da violência, teria chegado aos nossos dias? Chegado com a mesma força, para não dizer violência narrativa, descritiva?

Não, não acredito em poder outro que não o da violência capaz de abrandar a violência. Um livro pode, e aqui mais uma vez elogio o trabalho de Ginzburg, incrementar o debate, nada além.

Mais importante é o uso da violência, da melancolia, pelas artes   de modo geral e pela literatura no caso em questão.

Louis Aragon em seu poema Front Rouge sugere o assassinato de policiais

«Pliez les réverbères comme des fétus de pailles

Faites valser les kiosques les bancs les fontaines Wallace

Descendez les flics

Camarades

descendez les flics

Plus loin plus loin vers l'ouest où dorment

les enfants riches et les putains de première classe

Dépasse la Madeleine Prolétariat

Que ta fureur balaye l'Élysée

Tu as bien droit au Bois de Boulogne en semaine

Un jour tu feras sauter l'Arc de triomphe

Outro exemplo de uso da violência a serviço da grande literatura você encontrará em Les Fleurs du mal, de Charles Baudelaire. Vá ao poema Le Vin de l'assassin:

ma femme est morte, je suis libre !

Je puis boire tout mon soûl.

Lorsque je rentrai sans un sou

Ses cris me déchiraient la fibre.

[...] /Je l'ai jetée au fond d'un puits,

Et j'ai même poussé sur elle

Tous les pavés de la margelle. [...]

Ecraser ma tête coupable,

 

A violência aproveitada por um escritor talentoso, sem ser gratuita, será plenamente justificada e terá boa acolhida. Trata-se da mesma violência aproveitada por Francis Bacon em seus quadros, a mesma violência utilizada por seja lá quem for que escreveu a Bíblia, Bíblias...e muito bem aproveitada, sobretudo pela igreja católica que sobrevive graças ao eterno combate entre o bem e o mal.

Tudo regiamente pago, bien sûr!

Nenhum comentário: