domingo, 19 de junho de 2011

Provisão de Sonhos


Edmar Oliveira           

Outra vez, já a nona semana de maratona literária na terra Filha do Sol do Equador. No ano que vem serão dez anos nos quais uma semana é dedicada às letras, numa terra onde antes era conhecida pelo índice de analfabetos. Em três anos fui convidado a testemunhar o fervilhar das gentes, por entre tendas, buscado o procurado livro, confraternização dos escritores da terra, homens das letras que lá tanto há. Procura nervosas pelas palestras mais importantes, lotações esgotadas, escolares de pé. Atenção cerimoniosa as palavras do orador. Pela terceira vez assisto espantado a este sucesso de público por shows não usuais.

            Nas tendas, onde se discute lançamentos do ano dos escritores da terra, a procura é dividida entre jovens, velhos, moças bonitas e rapazes feios. Ali, quando fui chamado para fazer uma pré-apresentação de “von Meduna”, conheci Keula, uma grade poeta da terra, que comandava as rodas de conversa. E eu, que já era amigo desta grande escritora por sua participação no Piauinauta, mas nunca a vira pessoalmente, fiquei encantado.

(Aqui uma confissão: com os seus primeiros poemas, saiu no Piauinauta uma foto da moça, a quem eu fui apresentado, literariamente, pelo Cinéas. Deslumbrante! A poeta, além dos lindos versos era a bela da foto ao entardecer! Quis conhecê-la por várias vezes que lá estive. Perguntava por ela ao Cinéas e ele dava uma desculpa esfarrapada e eu não a conhecia. Cheguei a pensar que a poeta era uma invenção feminina do Cinéas, como a daquele dentista do interior que enganou o Lamartine Babo(*). A história está reproduzida lá em baixo porque é digna de nota. É que pra quem conhece o Cinéas, ele é bem capaz disso – perguntem ao Salgado Maranhão, ao Climério ou ao Paulo José Cunha. Pois bem, quando fui apresentado a Keula real, quase que despenco do palco. A loura de nome árabe é mais bonita que na foto que eu tinha!)

Mas voltando ao SALIPI. Cheguei no meio da semana e não vi o Laurentino, o Noll, o Fiúza ou o Marcelo Ribeiro, que tem um belo trabalho sobre a Tropicália. Mas na manhã cedinho da sexta-feira, já estava disputando um lugar para ver a palestra do Assis Brasil. Autor da belíssima “Tetralogia Piauiense” que inclui “Beira Rio, Beira Vida”, “A Filha do Meio Quilo”, “O Salto do Cavalo Cobridor” e “Pacamão”, algumas de suas expressivas obras, que o leitor pode encontrar num só volume. Não posso deixar de mencionar o pequeno (mas denso) romance “Os que Bebem como os Cães”, que tanto me impressionou. Além de extensa critica literária em mais de cem publicações desse autor da terra. Assis tem mais de oitenta anos, mas parece um tagarela juvenil quando começa a falar. Contou-nos uma preciosidade: seu pai, descendente de portugueses, trazia o sobrenome Almeida Portugal. Portanto, quando o escritor nasceu deveria ser batizado por Francisco de Assis de Almeida Portugal, mas seu pai, apaixonado pela terra adotiva de sua família, substituiu o Portugal por Brasil e assim ganhamos o “Assis Brasil”. No meio de tanta informação ainda nos brindou com uma análise da obra dos artistas plásticos Hélio Oiticica e Lígia Clack. Fiquei babando e saboreando aquela conferência sobre a vida.

No sábado à noite foi a vez de José Carlos Capinam fazer sua conferência: “A Tropicália Revisitada”. Foi uma conversa descontraída entre os poetas Salgado Maranhão, o anfitrião, e Capinam, lendo, cantando, se (e nos) emocionando. Ao final subiu também ao palco o poeta cubano Alpídio Alonso-Grau e então a récita ficou animada. Depois, Fifi e Wellington (dois dos três mosqueteiros do SALIPI, que também são quatro: mais o Romero e o Cinéas) levaram um grupo animado para um jantar com macaxeira e carde de sol. O poeta cubano foi fotografado tomando coca-cola e se esbaldando na carne generosa. Capinam nos contava mais histórias e o Geraldo Brito (grande músico e compositor piauiense) lembrava dos acordes das histórias. O casal George e Eliane nos contou mais aventuras do Dr. Clidenor que não estão no “von Meduna”. Acho que se houver segunda edição o personagem vai crescer. Ou quem sabe um novo trabalho sobre o primeiro psiquiatra do Piauí. O poeta de Caxias (falo do Salgado Maranhão) se atracou num queijo de coalho com macarrão, na nossa mistura piauseira à qual não falta a farinha.

No dia seguinte acordei nervoso na tarefa de fechar o Salão. O Clube dos Diários estava lotado para uma tarde de domingo. Meu compadre Cinéas fez as honras da casa e eu falei as besteiras de sempre. Mas o “von Meduna” parece que agradou. O Gisleno Feitosa fez uma participação luxuosa declamando os sintomas do povo nordestino. Destaque da presença de Graça Vilhena, a poeta número um do Piauinauta. Depois, fomos todos ver o show do “Validoaté”, que encerrou o evento. No ano que vem faz dez anos de maratona. Nota de digna: no mesmo momento em que eu autografava meu livro, minha sobrinha Clara Mello (filha de Patricia Mellodi, prima querida, a mais talentosa da família) estava com o pai, João Claudio Moreno, autogravando seu livro "Casa de Isabel" (extraordinária obra para a pequena escritora, declara o tio leitor e babão).  E fiquei me perguntando o que faz essa multidão de famintos do saber, procurar um conhecimento não mensurável, diferente dos apetrechos tecnológicos. Acho que é como diz Saramago: “Um homem precisa de fazer a sua provisão de sonhos”. 



(*) A HISTÓRIA DO LAMARTINE BABO CITADA ACIMA: Conforme informa Áurea Netto Pinto, no princípio da década de 30, do século XX, seu irmão, o dentista Carlos Alves Netto (chamado “Caro”, pelos amigos) colecionava fotos de celebridades do rádio. Ele mesmo era um artista, compunha e cantava suas próprias composições, tocava vários instrumentos, escrevia peças teatrais, pintava cenários e interpretava. Para obter as fotos dos artistas, lançava mão de todos os recursos. Inicialmente, escrevia a eles e, por vezes, para maior êxito, adotava um pseudônimo feminino. Lamartine Babo, que estava no auge do prestígio, era o artista do momento e acabara de compor a música “O teu cabelo não nega, mulata”, que lhe gerou problemas autorais. Assim, Carlos Netto escreveu a Lamartine Babo, fazendo se passar por uma certa “Nair Oliveira Pimenta”, mineira de Dores da Boa Esperança. Com o tempo, Lalá (apelido de Lamartine) e Nair passaram a se corresponder com freqüência. Se Lamartine escrevia em prosa, Nair respondia em prosa, sem ele escrevia em versos, “ela” respondia em versos. Lamartine se admirou com a inteligência da sua correspondente, enviou as fotos e, por um ano, manteve esta correspondência; até que Nair interrompeu as cartas, alegando que iria se casar com um primo e que “tudo não se passava de um sonho impossível”. Lalá, ansioso e preocupado, no ano de 1937, resolve ir a Boa Esperança para conhecer Nair. As crônicas do lugar descrevem Lamartine, ao chegar na cidade, como “magro, feio e desdentado; porém, um sultão orgulhoso de seu harém”. Apresentaram-lhe a única Nair do lugar, que era uma menina de 6 anos de idade. Decepcionado, não desistiu e continuou sua busca pela cidade, até que alguém lhe revelou: “Nair era um ‘marmanjo’ que o ludibriara para conseguir sua foto”! Apesar do receio da verdade, o dentista Carlos Alves Netto, irmão de Nair, assumiu: era ele quem mandava as cartas. Ao saber de tudo, Lalá capitulou, silenciosamente, sem comentários. Ficou na cidade e conheceu melhor Carlos Netto, de quem se tornou grande amigo. A juventude e os músicos do lugar passaram a se reunir, diariamente, com Lalá, que à luz de lampião, em volta da mesa, a todos encantava com sua inteligência privilegiada. Assim, marcado um piquenique para a despedida de Lamartine, este, olhando a Serra da Boa Esperança que emoldurava a paisagem, começou a solfejar as notas, que Carlos Netto ia escrevendo na pauta improvisada num pedaço de jornal. E com as notas, foi saindo a letra.
Quando da reinauguração do Clube Dorense, foi prevista uma homenagem a Lamartine Babo, porém ele faleceu antes. Assim, em sua homenagem, a municipalidade ergueu um monumento, numa das principais vias públicas da cidade, a Avenida Marechal Floriano Peixoto. ( http://pt.wikipedia.org/wiki/Serra_da_Boa_Esperan%C3%A7a_(can%C3%A7%C3%A3o )


Um comentário:

José Henrique Nogueira disse...

Parabéns Edmar. Quem sabe no 10º vou lá. Muito boa a história do Lamartine. Abraço