Semana Santa em Oeiras |
(Rogério Newton)
Cheguei na última quinta-feira à noite a Oeiras no momento
em que a Procissão da Fugida escapava pelo Beco de Antonio Gentil. Fui atrás, a
tempo de vê-la chegar ao Rosário e entrar na igrejinha jesuítica. Perguntei-me
por que me interessei em seguir os últimos instantes do cortejo. Deve haver
alguma razão inconsciente ou afetiva. O certo, porém, é que vejo o poético na
procissão.
O episódio me fez observar, a partir do meu próprio sentir,
alguns aspectos religiosos da semana santa de Oeiras. Compartilho com os
leitores, partindo do pressuposto de que possa encontrar quem se interesse por
esse assunto. Se não, pulem de página. Só não pulem no meu pescoço para
torcê-lo, pois o que direi aqui pode desagradar. Mas digo: é com sinceridade
que o faço e com desejo de que possa auxiliar outros que igualmente procuram
compreender e não simplesmente aceitar como “cláusula pétrea” o que a tradição
nos legou.
Não acho que Cristo tenha fundado o cristianismo ou que Buda
tenha fundado o budismo. Isso deve ter sido tarefa levada a efeito por seus
seguidores. Portanto, a experiência profunda e os ensinamentos de Cristo
parecem não ter vinculação necessariamente inspiradora com os rituais externos
que se vêem na semana santa em Oeiras. “Os ensinamentos de Cristo – escreveu Bertrand
Russel em 1930 -, tal como aparecem nos Evangelhos, tem tido
extraordinariamente pouco a ver com a ética dos cristãos. A coisa mais
importante sobre o cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é
Cristo, e sim a Igreja, de modo que se formos julgar o cristianismo como força
social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de material”.
Se formos recorrer aos Evangelhos, estes colocarão muitas
das práticas ditas cristãs em xeque-mate. Por exemplo, máximas atribuídas a
Cristo, tais como “Vá, vende tudo e dê aos pobres”; “Não acumules tesouros na
terra, mas no teu coração”; Não julgueis para não serdes julgados”; “Amai-vos
uns aos outros”, não são seguidas com forte desejo pelo grosso de católicos e
protestantes. A afirmação d’Ele segundo a qual a pessoa deve recolher-se para
fazer sua prática espiritual, sem ser vista por outros, aponta para a natureza
interna do desenvolvimento espiritual. É no íntimo do coração humano que está a
fonte da divindade. Esse aspecto não constitui alicerce lógico para a
espiritualidade de exibição pública, fácil de ser alcançada, mas que não tem
nenhum valor, se restrita ao campo puramente externo da visibilidade e do
espetáculo.
Tarefa que exige
espírito investigativo é compreender por que a Igreja faz a apologia da dor de
forma tão dramática na semana santa. Não estou dizendo que o sofrimento não tem
seu lugar na psique humana. O que estou querendo dizer, ou melhor, perguntar, é
por que o catolicismo e procissões e rituais da semana santa de Oeiras celebram
a dor com tanta ênfase? Será um ranço medieval? A fuga de Jesus perseguido (a
mando da autoridade política mancomunada com a autoridade religiosa da época),
seu flagelo na cruz e o canto de Verônica nas ruas históricas de Oeiras
(“Caminheiro, que passai / por este caminho / parai um pouquinho / e olhai, por
favor / se neste mundo existe / uma dor assim tão grande / como a dor de minha
dor”) nos faz identificarmo-nos com o sofrimento. Talvez ocorra aí uma catarse
aristotélica semelhante à das tragédias gregas. Até aí nada de novo, já que a
catarse está presente na fábula ocidental, no cinema, teatro e televisão
contemporâneos, nem sempre com objetivos edificantes. A pergunta que faço é se
a catarse da dor tem efeito paralisante ou impulsionante? Se vai instilar no
espectador o estímulo à submissão ou à ação individual para transformação
espiritual interna e, por que não dizer?, para a atuação social e política
consequente.
Junto com a dor, quase todas as procissões da semana santa
renovam o velho e obscuro conceito de pecado. Se o leitor reparar bem, o pecado
é um protagonista. Está presente nos hinos repetidos a não sei quantas
gerações. Um deles afirma: “Eis-me aos vossos pés, grande pecador / por meus
enormes crimes, perdoai Senhor!”. Parece um mantra distópico, constantemente
lembrado, milhares de vezes entoado. Não me parece espiritualmente acertado nem
psicologicamente estimulante repetir a todo instante: “sou pecador, sou
pecador”. Isso deixa o ser humano vulnerável à fraqueza mental e à submissão de
toda ordem. Não é melhor dizer: sou luz, sou filho da Criação? Tenho a potência
dentro de mim, posso brilhar e ser feliz, para isto nasci?
Seja como for, há muito de subjetividade na experiência
espiritual. A maioria das pessoas acha que do jeito como estão as coisas fazem
sentido e é melhor deixar assim. Lembro, porém, que Hannah Arendt afirma em um
de seus livros que mesmo Platão, em algum momento pontual de sua obra, indicou
o uso do medo religioso para controle das massas. Então a coisa não é tão
simples assim nem está restrita à esfera subjetiva.
Apesar de tudo, não me furtarei a entrar em algum cortejo
religioso em Oeiras, se assim sentir vontade. As procissões são acontecimentos
poéticos e fazem parte do jogo terreno e cósmico. Na próxima quinta-feira,
haverá a famosa Procissão do Fogaréu. As ruas históricas da cidade ficarão
tomadas pela luz de milhares de lamparinas. Parece um colar vivo e brilhante.
Mas a trilha sonora diz exatamente o oposto, pois os sermões e os hinos lembram
a todo instante que somos pecadores.
O medieval ranço do pecado devia ser banido e em seu lugar
ficar só a Luz.
Procissão do Fogaréu, Oeiras |
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