domingo, 13 de junho de 2010

LÉXICO FAMILIAR

Luís Horácio

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Perdoe, atento leitor, mas a frase de Tolstói em Ana Karênina me veio tão logo iniciei a leitura de Léxico Familiar.

Natalia Guinzburg reconstitui com palavras ações familiares, as ações de sua família. E os sofistas já diziam: o melhor que tem o homem é a palavra, o pior que tem o homem é a palavra. Quem substituir palavra por família também acertará o alvo.

Todo escritor terá em sua família um reservatório de histórias, basta admiti-las o que convenhamos nem sempre é tarefa das mais fáceis, apesar de a teoria literária consegue diferenciar a autoficção da autobiografia.

Léxico Familiar apresenta a memória de Natalia Ginzburg, no entanto a forma primorosa com que a autora as renova tornam o tema, aparentemente restrito aquela família, de alcance universal. O leitor entrará em contato com um cotidiano tecido em palavras, assim como o cotidiano pintado pelo holandês Vermeer.De algum modo,bem resolvido leitor, você também se verá nas linhas e entrelinhas de Natalia.

O romance ou um corte autobiográfico de Natalia Ginzburg oferece ao leitor as impressões de uma família acerca do fascismo.Mas não fica restrita a simples análise, a família “põem a mão na massa”. Não se trata de um livro simples, exigente leitor, mas acima de tudo critico e de uma complexidade atraente. Um fora de série, seja visto como autobiografia ou como romance.

Representante feminina do neorrealismo italiano de pós-guerra, Natalia Ginzburg trabalha com a linguagem direta neste Léxico Familiar, predominância de diálogos desprovidos de pompa, as frases são carregadas de um naturalismo impressionante, sem com isso chegar ao superficialismo de uma novela de tv.Os artificialismos literários que a teoria recomenda não são utilizados. A temática, aparentemente banal, é abordada forma profunda. Invejável.

O que vem a ser este Léxico familiar? Romance, biografia? A autora consegue mostrar a junção de fatos reais e ficcionais no interior dessa obra? Mantém compromisso com a verdade,aspecto fundamental na escrita autobiográfica? A autora faz uma advertência: Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como se fosse um romance:ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer.

Segui a orientação a autora e li como um livro de autoficção;

O foco do problema passou a ser a autora, um ser enunciativo, uma persona, projetada pela autora real, que comanda as escolhas e estratégias envolvidas na construção da história, sem esquecer, no entanto, que a a autoficção é ficção.

Léxico familiar conta, grosso modo,a história de sua família, judeus italianos. A autora não segue a linha cronológica dos acontecimentos, tampouco se demora em detalhes. Dispensa os casamentos, mortes, ou melhor, comenta-os superficialmente. Sua atenção está voltada para o código que regula as relações entre os membros da sua família, são os detalhes, as maneiras de dizer as coisas, o tal do “léxico familiar.” Os hábitos e uma família incomum. Por exemplo: todos tinham o hábito de escrever poemas, não se fazia necessário efeméride tampouco ocasiões especiais, estudos de línguas, canções, brigas, as palavras e as expressões ouvidas na infância. As palavras que desenham um espaço e delimitam um tempo. Os contrastes entre a alegria da mãe e a ranhetice do pai, a atividade política.

Diz sobre seu pai: Às refeições, costumava tecer comentários sobre as pessoas que vira durante o dia. Era muito severo em seus julgamentos e xingava todo mundo de imbecil.Para ele um imbecil era “um parvo”. - Pareceu-me um grande parvo - dizia, comentando sobre alguém que acabara de conhecer. Além dos “parvos” havia “os negros”. “Um negro”, para meu pai, era quem tinha maneiras deselegantes,estabanadas e tímidas, quem se vestia de modo impróprio,quem não sabia ir à montanha, quem não sabia línguas estrangeiras.

É este o léxico familiar composto de brigas, de dizeres conflitantes, de espontaneidade, um léxico onde as idiossincrasias são encaradas com naturalidade, as divergências não colocam em risco a união familiar,o amor acima de tudo.

Nele há também muitas coisas que eu lembrava e que deixei de escrever, natural, por mais que se disponha a desnudar sua família, reservas, silêncios, vazios são bem entendidos. É outra característica notável desta autora, o distanciamento dos acontecimentos. Mesmo daqueles em que se não foi protagonista atuou como coadjuvante em cenas das mais fortes,o leitor não encontrará os exageros sentimentalóides tão comuns na literatura atual. E não se trata de episódios banais. São trágicos, dramáticos, vão da prisão dos irmãos, ao seu próprio isolamento com os filhos, passa pelo esfacelamento famíliar na guerra, culminam com a morte do primeiro marido, antes torturado na prisão. O peso de toda essa tragédia se dilui na brilhante narrativa de Natalia. Caberá ao leitor, finda a leitura, decifrar o enigma: Léxido familiar é um livro alegre ou um livro triste?

Adianto minha resposta. Um livro excelente.

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