domingo, 13 de abril de 2014

PARA CONFIRMAR O COMPLEXO DE VIRA-LATA


Luíz Horácio
(de Porto Alegre)
  


Sonhos e imaginação literária. Essas duas substâncias podem ser admitidas no meio científico? Podem ser transformadas e matéria da ciência? Não me atreveria a um palpite. Mas Freud, grande leitor, desde cedo lia Shakespeare, transformou os sonhos em elemento da ciência. Ao longo de sua trajetória profissional o leitor atento perceberá que muitas das teorias de Freud foram nutridas por obras literárias. Até aí nada de novo, muitos fizeram e continuam a fazer isso. Mas teria algo de novo em Freud com os escritores? Quem sabe se  tratado  como uma denúncia: “percebam, caros leitores, o quanto a  psicanálise deve a literatura”. Sim, eu sei que você dirá que cheguei  a uma conclusão medíocre e que me faria um grande bem se procurasse um analista. Quem sabe...quem sabe.

A obra de J.B. Pontalis  e Edmundo Gómez Mango, ambos psicanalistas, trata exatamente dessa junção; psicanálise e literatura. Mais precisamente a relação de Freud com alguns autores.

Embora o viés psicanalítico da obra, os autores apresentam um Freud amante da literatura, capaz de demonstrar afeição por este ou aquele personagem. Com você isso não ocorre, caro leitor? Também ocorre. Então sigamos em nossa desesperada busca de algo que justifique este Freud com os escritores.

Um outro ângulo para examinar a obra dos psicanalistas franceses: Literatura e Psicanálise dividiriam o mesmo objeto? A complexidade do ser humano, seus conflitos, sua porção obscura, Mais precisamente, ambas buscariam  a tradução desse enigma.

Mas deixemos parte dessas ferramentas de lado, a psicanálise. Prefiro não juntá-las visto que a esta cabe a doença  e não me parece que a literatura tenha igual pretensão. Se bem que pode auxiliar em algumas curas. Pelo menos momentâneas.

Freud com os escritores deve ser uma excelente leitura para psicanalistas e amantes dessa profissão. Por mais que se estabeleça a relação psicanálise/literatura, esta, embora seu papel de protagonista no livro, estará sempre a serviço da referida ciência. Pelo menos na obra de Pontalis e Mango.

Sei que temos o patético hábito de enaltecermos o rótulo estrangeiro. Isso vale para toda e qualquer atividade; dos automóveis aos vinhos sem esquecermos da literatura e da música. E por falar em música, talvez esteja aí  nossa maior prova de falta de amor próprio. Importamos e consumimos péssimas canções, apesar de nossos insuperáveis Luan Santana, Latino, Naldo  e a boçalidade extrema Ivete Sangalo e seu clone Claudia Milk.

Feita a digressão, retomo. Se não me engano me referia a elementos que podem interessar aos não psicanalistas, um deles: saber da relação de Freud com este ou aquele autor, o significado de determinado personagem, despertar nossa curiosidade ao descobrirmos que certo personagem ajudou na criação de tal teoria. Embora a relevância desse saber seja quase zero.

Afora isso, esclarecido leitor, você se defrontará com uma obra das mais óbvias. Faça uma análise acerca da lista de autores pelos quais Freud se interessava e depois me diga se não são os mesmos pelos quais você se interessa, que qualquer pessoa que tenha o hábito da leitura e costume ultrapassar os limiares melequentos de Crepúsculo, Código Da Vinci,  se interessa. A lista é grande, alguns integrantes: Shakespeare, Goethe, Schiller, Heine, Hoffmann, Dostoïevski,Stefan Zweig, Arthur Schnitzler, Romain Rolland, Thomas Mann.

Talvez um ou dois citados ao longo do livro  ainda sejam desconhecidos pelas “terras brasilis”e você  ainda não teve a oportunidade de aprender  aquela língua.

Eu sei, pelo menos bilingue leitor, e você também sabe que o livro foi muito bem recebido na França. Mas seria pelo seu valor literário ou pelo que traz de curiosidade acerca dos gostos literários do autor do Livro dos sonhos?

Um aspecto bastante curioso, por favor “ouça com bastante atenção”, é o sutil conflito que se estabelece em Freud entre seu amor à literatura e sua devoção à ciência.

“Freud com os escritores” obriga tal postura ao leitor não psicanalista, procure, cave, vá mais fundo, releia e talvez você encontre a razão. Eu não encontrei. Mas não sou parâmetro, sei muito bem de meu lado tosco. O que não impede de lembrar outro livro, e sem rótulo estrangeiro, um livro essencial principalmente para quem gosta de Literatura e alimente curiosidade acerca dos gostos de Freud. Falo de “Os dez amigos de Freud”, Paulo Sergio Rouanet. Cia. das Letras,2003.

Atendendo pedido de um editor vienense, Hugo Heller, Freud relacionou  livros com os quais mantinha uma relação de amizade.

São os "dez amigos" do título do livro de Sergio Paulo Rouanet. Os autores escolhidos por Freud foram Multatuli,Thomas Macauley, Rudyard Kipling ,Émile Zola, Anatole France, Gottfried Keller, Conrad Ferdinand Meyer, Theodor Gomperz, Dmitri Merejkovski e Mark Twain.

Rouanet, num trabalho minucioso e didático, analisa  cada um desses autores. Engano seu, caro leitor, caso acredite que a tarefa assim termina pois Rouanet cita  autores a quem o referido editor também solicitara uma relação de livros-  de Arthur Schnitzler e Herman Hesse, entre outros - e estuda suas listas, comparando-as com a de Freud. Um trabalho magnífico, em mais de 800 páginas uma obra indispensável.

Excetuando o viés psicanalítico, o qual não atrevo a comentar, o que tem em “Freud com os escritores” que não tem em “Os dez amigos de Freud”? Não vai responder, reflexivo leitor, não vai?

Então vou inverter a questão: o que tem em “Os dez amigos de Freud”  que não tem em “Freud com os escritores” ? Essa eu respondo.

Tem muita coisa, mas prefiro citar um detalhe, Sergio Rouanet cria uma psicoficção, apresenta o que podemos chamar de monólogo interior onde  simula processos associativos que poderiam ter ocorrido a Freud  quando fazia sua auto-análise.

“Freud com os escritores”  só em caso de não encontrar “Os dez amigos de Freud”.

 

Trecho

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Naturalmente, Shakespeare tinha o melhor quinhão: edições inglesas e alemãs. Dostoiévski, cujos romances admirava embora depreciasse o homem, demasiado neurótico a seu ver, é igualmente bem-representado. Surpresa: as uvres complètes de Flaubert na edição Conard (dezoito volumes), Maupassant (vinte volumes) e Anatole France (21 volumes ilustrados). Inúmeras e caras aquisições de bibliófilo.
Dentre os autores de língua alemã, Goethe, Heine e, em lugar de destaque entre os escritores contemporâneos, Thomas Mann, Arnold e Stefan Zweig. Curiosamente, nenhum sinal de Schnitzler, a quem, não obstante, considerava o seu "duplo".
Em certos livros, há frases sublinhadas. Às vezes, encontramos também observações na margem: "Não, não! Burrice. Estúpido". Atento e exigente, o leitor Freud não era do tipo que lia na diagonal.
Ao percorrer o catálogo, como não ficar impressionado com a variedade dos interesses de Freud, sua curiosidade insaciável, a extensão de sua cultura? E como não se perguntar: ele, que escreveu tantos livros, tantos artigos, que enviou tantas cartas a seus inúmeros correspondentes e teve em análise tantos pacientes, sim, como encontrou tempo para ler tantos livros? A resposta poderia perfeitamente ser esta: ele era um homem do livro. Talvez para ele, como o sonho interpretado em sua obra inaugural, a Traumdeutung, que ele chamava de Traumbuch (livro do sonho, ou livro-sonho), talvez jamais terminássemos de ler o mundo. Um mundo que, depois de Babel, era povoado por todo tipo de línguas e dialetos, um mundo cuja língua secreta se chamava inconsciente. 

Autores

 

J.-B. Pontalis (1924-2013), filósofo e psicanalista, é autor de, entre outros, A força de atração e Perder de vista (ambos pela Zahar, 1991), e À margem dos dias (Primavera Editorial, 2012), além de coorganizador de Vocabulário da psicanálise (Martins Editora, 2001). Edmundo Gómez Mango (1940), professor de literatura, psiquiatra e psicanalista, é autor de La place des mères (1999), La mort enfant (2003) e Un muet dans la langue (2009), publicados pela Gallimard.

 

             Título original: Freud avec les écrivains

             Tradução: André Telles

             Capa: Sílvia Nastari

             Páginas: 304

             Formato: 14 cm x 21 cm

             Área: psicanálise

             Editora Três Estrelas

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