Luíz Horácio
(de Porto Alegre)
Sonhos e imaginação literária. Essas duas substâncias podem ser
admitidas no meio científico? Podem ser transformadas e matéria da ciência? Não
me atreveria a um palpite. Mas Freud, grande leitor, desde cedo lia
Shakespeare, transformou os sonhos em elemento da ciência. Ao longo de sua
trajetória profissional o leitor atento perceberá que muitas das teorias de
Freud foram nutridas por obras literárias. Até aí nada de novo, muitos fizeram
e continuam a fazer isso. Mas teria algo de novo em Freud com os escritores? Quem
sabe se tratado como uma denúncia: “percebam, caros leitores,
o quanto a psicanálise deve a
literatura”. Sim, eu sei que você dirá que cheguei a uma conclusão medíocre e que me faria um
grande bem se procurasse um analista. Quem sabe...quem sabe.
A obra de J.B. Pontalis e Edmundo
Gómez Mango, ambos psicanalistas, trata exatamente dessa junção; psicanálise e
literatura. Mais precisamente a relação de Freud com alguns autores.
Embora o viés psicanalítico da obra, os autores apresentam um Freud
amante da literatura, capaz de demonstrar afeição por este ou aquele
personagem. Com você isso não ocorre, caro leitor? Também ocorre. Então sigamos
em nossa desesperada busca de algo que justifique este Freud com os escritores.
Um outro ângulo para examinar a obra dos psicanalistas franceses:
Literatura e Psicanálise dividiriam o mesmo objeto? A complexidade do ser
humano, seus conflitos, sua porção obscura, Mais precisamente, ambas
buscariam a tradução desse enigma.
Mas deixemos parte dessas ferramentas de lado, a psicanálise. Prefiro
não juntá-las visto que a esta cabe a doença
e não me parece que a literatura tenha igual pretensão. Se bem que pode
auxiliar em algumas curas. Pelo menos momentâneas.
Freud com os escritores deve ser uma excelente leitura para
psicanalistas e amantes dessa profissão. Por mais que se estabeleça a relação
psicanálise/literatura, esta, embora seu papel de protagonista no livro, estará
sempre a serviço da referida ciência. Pelo menos na obra de Pontalis e Mango.
Sei que temos o patético hábito de enaltecermos o rótulo estrangeiro.
Isso vale para toda e qualquer atividade; dos automóveis aos vinhos sem
esquecermos da literatura e da música. E por falar em música, talvez esteja
aí nossa maior prova de falta de amor
próprio. Importamos e consumimos péssimas canções, apesar de nossos
insuperáveis Luan Santana, Latino, Naldo
e a boçalidade extrema Ivete Sangalo e seu clone Claudia Milk.
Feita a digressão, retomo. Se não me engano me referia a elementos que
podem interessar aos não psicanalistas, um deles: saber da relação de Freud com
este ou aquele autor, o significado de determinado personagem, despertar nossa
curiosidade ao descobrirmos que certo personagem ajudou na criação de tal
teoria. Embora a relevância desse saber seja quase zero.
Afora isso, esclarecido leitor, você se defrontará com uma obra das mais
óbvias. Faça uma análise acerca da lista de autores pelos quais Freud se
interessava e depois me diga se não são os mesmos pelos quais você se
interessa, que qualquer pessoa que tenha o hábito da leitura e costume
ultrapassar os limiares melequentos de Crepúsculo, Código Da Vinci, se interessa. A lista é
grande, alguns integrantes: Shakespeare, Goethe, Schiller, Heine, Hoffmann,
Dostoïevski,Stefan Zweig, Arthur Schnitzler, Romain Rolland, Thomas Mann.
Talvez um ou dois citados ao longo do livro ainda sejam desconhecidos pelas “terras
brasilis”e você ainda não teve a
oportunidade de aprender aquela língua.
Eu sei, pelo menos bilingue leitor, e você também sabe que o livro foi
muito bem recebido na França. Mas seria pelo seu valor literário ou pelo que
traz de curiosidade acerca dos gostos literários do autor do Livro dos sonhos?
Um aspecto bastante curioso, por favor “ouça com bastante atenção”, é o
sutil conflito que se estabelece em Freud entre seu amor à literatura e sua
devoção à ciência.
“Freud com os escritores” obriga tal postura ao leitor não psicanalista,
procure, cave, vá mais fundo, releia e talvez você encontre a razão. Eu não
encontrei. Mas não sou parâmetro, sei muito bem de meu lado tosco. O que não
impede de lembrar outro livro, e sem rótulo estrangeiro, um livro essencial
principalmente para quem gosta de Literatura e alimente curiosidade acerca dos
gostos de Freud. Falo de “Os dez amigos de Freud”, Paulo Sergio Rouanet. Cia.
das Letras,2003.
Atendendo pedido de um editor vienense, Hugo Heller, Freud
relacionou livros com os quais mantinha
uma relação de amizade.
São os
"dez amigos" do título do livro de Sergio Paulo Rouanet. Os autores
escolhidos por Freud foram Multatuli,Thomas Macauley, Rudyard Kipling ,Émile Zola,
Anatole France, Gottfried Keller, Conrad Ferdinand Meyer, Theodor Gomperz, Dmitri Merejkovski e Mark Twain.
Rouanet, num
trabalho minucioso e didático, analisa
cada um desses autores. Engano seu, caro leitor, caso acredite que a
tarefa assim termina pois Rouanet cita
autores a quem o referido editor também solicitara uma relação de
livros- de Arthur Schnitzler e Herman
Hesse, entre outros - e estuda suas listas, comparando-as com a de Freud. Um
trabalho magnífico, em mais de 800 páginas uma obra indispensável.
Excetuando o viés psicanalítico, o qual não atrevo a comentar, o que tem
em “Freud com os escritores” que não tem em “Os dez amigos de Freud”? Não vai
responder, reflexivo leitor, não vai?
Então vou inverter a questão: o que tem em “Os dez amigos de Freud” que não tem em “Freud com os escritores” ?
Essa eu respondo.
Tem muita coisa, mas prefiro citar um detalhe, Sergio Rouanet cria uma
psicoficção, apresenta o que podemos chamar de monólogo interior onde simula processos associativos que poderiam
ter ocorrido a Freud quando fazia sua auto-análise.
“Freud com os escritores” só em
caso de não encontrar “Os dez amigos de Freud”.
Trecho
.
Naturalmente, Shakespeare tinha o melhor quinhão: edições inglesas e
alemãs. Dostoiévski, cujos romances admirava embora depreciasse o homem,
demasiado neurótico a seu ver, é igualmente bem-representado. Surpresa: as uvres
complètes de Flaubert na edição Conard (dezoito volumes), Maupassant (vinte
volumes) e Anatole France (21 volumes ilustrados). Inúmeras e caras aquisições
de bibliófilo.
Dentre os autores de língua alemã, Goethe, Heine e, em lugar de destaque
entre os escritores contemporâneos, Thomas Mann, Arnold e Stefan Zweig.
Curiosamente, nenhum sinal de Schnitzler, a quem, não obstante, considerava o
seu "duplo".
Em certos livros, há frases sublinhadas. Às vezes, encontramos também
observações na margem: "Não, não! Burrice. Estúpido". Atento e
exigente, o leitor Freud não era do tipo que lia na diagonal.
Ao percorrer o catálogo, como não ficar impressionado com a variedade
dos interesses de Freud, sua curiosidade insaciável, a extensão de sua cultura?
E como não se perguntar: ele, que escreveu tantos livros, tantos artigos, que
enviou tantas cartas a seus inúmeros correspondentes e teve em análise tantos
pacientes, sim, como encontrou tempo para ler tantos livros? A resposta poderia
perfeitamente ser esta: ele era um homem do livro. Talvez para ele, como o
sonho interpretado em sua obra inaugural, a Traumdeutung, que ele chamava de Traumbuch
(livro do sonho, ou livro-sonho), talvez jamais terminássemos de ler o mundo.
Um mundo que, depois de Babel, era povoado por todo tipo de línguas e dialetos,
um mundo cuja língua secreta se chamava inconsciente.
Autores
J.-B. Pontalis (1924-2013), filósofo e psicanalista, é autor de, entre
outros, A força de atração e Perder de vista (ambos pela Zahar, 1991), e À
margem dos dias (Primavera Editorial, 2012), além de coorganizador de Vocabulário
da psicanálise (Martins Editora, 2001). Edmundo Gómez Mango (1940), professor
de literatura, psiquiatra e psicanalista, é autor de La place des mères (1999),
La mort enfant (2003) e Un muet dans la langue (2009), publicados pela
Gallimard.
• Título original: Freud avec les
écrivains
• Tradução: André Telles
• Capa: Sílvia Nastari
• Páginas: 304
• Formato: 14 cm x 21 cm
• Área: psicanálise
• Editora Três Estrelas
Nenhum comentário:
Postar um comentário