domingo, 12 de fevereiro de 2012

Quando algo cheira mal (ovo goro)

Edmar Oliveira


Fiquei com uma sensação de “algo cheira mal”. Não é um ainda “vai dar merda”, departamento psicológico de entendimento da certeza de que algumas ações estão absolutamente equivocadas no nosso “desconfiômetro”. Vou tentar explicar melhor. 

Aconteceu numa ação que efetivamente, e sem nenhuma dúvida, foi uma ação “do bem”, para continuarmos no terreno das intuições necessárias aos seres de “boa índole”.  

Logo imediatamente ao fato de que algumas bestas humanas espancaram um mendigo na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, e quase matam um cidadão que ousou defender a cidadania do desvalido, as redes sociais identificaram dois dos quase homicidas e um cartaz de “procura-se” circulou na internet provocando a prisão deles e declarando um terceiro identificado como foragido. Isso um pouco antes da notícia virar notícia na mídia oficial. Foi uma ação em que as redes sociais funcionaram na justa medida da função de cidadania. Orgulhamo-nos todos da ação, inclusive eu que ajudei a divulgar o cartaz de “procura-se”. Note-se o fato de que os três, antes da ação das redes sociais, já tinham se apresentado na delegacia e soltos, como cidadãos primários que eram, para responder o processo em liberdade. O clamor da denúncia fez aparecer uma outra vítima dos rapazes espancadores e a polícia teve de manter a prisão de uma segunda vez, revendo o seu procedimento comum, e pressionada pelo clamor circulante virtual. 

Todo mundo já estava cansado da impunidade de nossa justiça, melhor dizendo injustiça, oficial. Tocar fogo em índios, mendigos e bêbados são “massacres da candelária” que os filhinhos de papai fazem por divertimento, contando com a impunidade de sempre. Não precisa citar os inúmeros casos que saltam na nossa memória. Depois eles viram advogados, médicos, engenheiros, quando não políticos, e vão corroer os pilares da civilização. Neste caso a ação resultou em prisão e precisamos continuar vigilantes acompanhando as apelações e manobras dos advogados para livrar da prisão crápulas inomináveis. A justiça tem que mantê-los na cadeia, julgá-los e penalizá-los conforme a lei e com agravantes de serem das classes mais favorecidas e não fazer desses requisitos atenuantes. A lei com o rigor da lei seria o justo, apesar de não mais acreditarmos na justiça da Justiça, só para ficarmos em posição de alerta. 

Muito bem, se todos concordamos até aqui, porque, ou o quê, me “cheirou mal” nesse caso? Diria que o excesso de comemorações nas redes sociais: “bandidos!, covardes!, vermes!” acompanhavam comentários que entendi como se quase pulando a cerca da legalidade para um justiçamento dos meliantes nas redes sociais. Comentários pediam castigos explicitados para os malfeitores e prisão aos pais dos meninos que já eram adultos. Era como se cada um de nós soubéssemos exatamente a quem pertencia a culpa naquele momento. E para um crime bárbaro já teríamos a condenação com convencimento próprio. E mais: tive a sensação que se saíssemos das redes digitais virtuais para o mundo analógico real não me assustaria se nós, agora, cometêssemos a barbárie com os agressores agredindo-os fisicamente. Foi essa a sensação que não “me cheirou bem”. 

Tentando explicar melhor só para chamar a uma reflexão. O mundo em que vivemos, e ajudamos a criar, produziu tais pessoas que condenamos. E temos que continuar condenando: pague-se o crime na lei. Mas quando queremos executar a lei, uma lei que nós acreditamos como certa ao nosso modo, não nos faz muito diferentes deles. O que pode nos fazer diferente é responsabilizar os infratores por seus atos perante a lei. E exigir que ela seja cumprida mesmo se os criminosos sejam nossos filhos. 

Pois não só os pais são culpados na formação dos valores (e as vezes até o são, os exemplos estão na mídia com pais perdoando os “malfeitos” dos filhos), mas as instituições formadoras (escola, família, entre outras) e as instituições exemplares (igreja, polícia, político, justiça, elites) ruíram nesses tempos de individualismo competitivo.  

Tempos propícios para que o ovo da serpente seja chocado. O ovo já parece goro. Precisamos estar atentos fiscalizando o mal em nós próprios. Porque o mal pode ser banalizado como nos ensinou Hannah Arendt, neles e em nós também. Foi isso que me cheirou mal. Não me sentindo melhor, mas percebendo quando eu também exalo um odor ruim e banal. Ou que um de vocês me chame atenção. Combinado?
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ilustração: "Urutu" de Tarsila do Amaral.
O Piauinauta não sairá na próxima quinzena, domingo 26 por ressaca de carnaval. Volta dia 04 de março.

 

 

5 comentários:

Ana Cecília disse...

Eu fui uma que convoquei os pais dos agressores, convoquei os pais da nação, convoquei todos os pais!
Ou apenas um... o que nos identifica a LEI, princípios, valores.
De fato, recebi comentários à minha publicação conclamando a "surra" aos agressores, reivindicando volta da "palmadinha", ou convocando "talião" à solução do problema. Isso me assustou, pois não foi essa a minha reivindicação e comentei de volta.
O que pedi foi CADEIA, pedi consequencia para os transmissores de valores éticos/morais aos geradores de bestas humanas.
Pois digo a vcs que enquanto uma andorinha posso, e devo, fazer algo apenas de dentro do meu ninho, mas também posso me associar à outras andorinhas. Algo tem que ser feito e tem que começar por algum lugar! Pois que sejamos nós andorinhas bem barulhentas! O barulho coletivo promove efeitos muito mais duradores do que a covardia silenciosa sentada à calçada esperando pelas "instituições". Isso tb tem cheirado muito mal, Edmar...

Fatima Lima disse...

Combinado de estarmos juntos, pensando e agindo. Discutindo. Andorinhando do jeito que cda um sabe/pode.
Fatima Grauna

LOUCA PELA VIDA disse...

Gostei dessa andorinha, rsrs, chamada Cecília. Lindo nome para uma andorinha. Cá em Teresina, discordo do "coro dos contentes" dos companheiros com os quais desde a época de universidade lutei ao lado deles, agora no sindicato do s servidores do municipio. Puxam uma greve sem o primeiro dia de aula de centenas de crianças e adolescentes filhos de trabalhadores assalariados, biscateiros, empregadas doméstica, avós aposentados, psicóticos, dependentes químicos e alguns nem tem quem responda por elas. São na maioria excluídos das politicas de moradia moradia,saúde... familias que complementam o bolsa familia com biscaites, até mesmo a prostituição. Estes professores que reivindicam seu Estado de Direito de Greve esquecem e imitam o poder público que eles criticam quando mantém as escolas totalmente fechadas para estas crianças e seus filhos estudam em escolas particulares em sua maioria. Nem em pensamento seus filhos podem sentar-se ao lado dos filhos dos trabalhadores, a escola feita por eles onde defenem melhores salários não tem qualidade e criticam os empresários da educação que estão no momento gestando as secretárias do municipio e estado, ambos donos de faculdades. Ora, estes mesmos militantes pagam serviços da escola privada. Só tento fazer um paralelo, com a educação "burguesa" ofertada, cara e que educa os filhos dos governantes ou os filhos de papai sem noções básicas de humanidades.

Carlos Nascimento disse...

Análise enxuta, Edmar. Perfeita.
É interessante como o modo de agir exigido do outro tantas vezes desaparece diante dos própiros atos.
Acredito que atos individuais decentes mudam o coletivo. Mas o perigo é que o coletico, tantas vezes, se reveste de uma força, que para desfigurar-se em violência é um pulo. Não digo que é o caso, pois não sou muito íntimo de redes sociais. Mas acho corajosa sua crítica e auto-crítica. Coisa muito positica. Quem quer mudar precisa ter este OLFATO que demonstra no seu texto. É muito constrangedor perceber o cheiro da obra do cachorro depois que se pisa o tapete. Os individuos têm cara, e quando partem para o coletivo precisam redobrar sua capacidade de perceber, pricipalmente os que vão à frente, pois o coletico é como o Sistema, não tem rosto, nome, mas tem instrumentos para assumir diversas formas e ações. Me indignei com estas bestas humanas, covardes, como me indignei como os outros covardes que agrediram o casal gay no aeroporto. Que a Lei se faça e penalise a covardia. Ponto. Tô contigo!

Anônimo disse...

Percepção

Tudo é tão delicado
Até um lado
Pode ter outro lado

Lelê Fernandes