Vladimir Carvalho (2)
Quando
Edmar Oliveira decidiu-se a vir aventurar-se no Rio de Janeiro nos ainda duros
finais dos anos de 1970 já se encontrava sobrecarregado de nordestinidades: a
seca, o cangaço, domínios holandeses, coronelismo, marchas revolucionárias, a
fama dos cordéis e da literatura regionalista de décadas passadas. Não
esquecera tampouco as boiadas, os vaqueiros, o folclore e o velho Parnaíba com
suas curvas e ilhas passeadas por sonolentos vaporetos, enfim a cara e a
memória do seu avoengo Piauí. Tudo aquilo e as histórias que curtira desde
menino fustigavam a sua sensibilidade como a exigir o seu testemunho.
Entretanto, não lhe pesavam no espírito essas lembranças; pelo contrário, as
acolhia com uma espécie de estranha ternura, um paliativo enquanto afiava as
garras no conhecimento da psiquiatria, esta, sim, ferramenta de trabalho que
lhe inseria em novo cotidiano como médico engajado na fervilhante metrópole.
Foi
adiando como pôde o embate com o memorial que trazia no seu baú até que finalmente
resolveu sentar-se e escrever o que latejava em seu íntimo. Veio como um jorro
o seu primeiro romance, Terra do Fogo, que publicou em 2013
(Vieira & Lent Casa Editorial, Rio de Janeiro) sobre uma Teresina tentando
acompanhar as mudanças prementes do país e fazer a sua reforma urbana, nem
sempre favorável aos pobres e humildes.
Os
melhores dotes de sua obra inaugural, que não era indiferente a certos aspectos
do épico, ressurgem agora de forma mais assumida em seu novo romance, este Sitiado
(Chiado Editora, Portugal, Brasil, Angola) já nas livrarias. Sempre
honrando os fatos da História, no caso a marcha célebre da Coluna Prestes,
empreendida em meados dos anos de 1920 – em especial se ocupando dos episódios
da sua passagem pelas terras do Piauí e do Maranhão – Edmar Oliveira leva a
cabo um urdido jogo de contraponto seguindo os passos de seus personagens,
ziguezagueando entre o real histórico e o imaginário popular num aliciante vai
e vem lúdico e prazeroso que prende e envolve o leitor.
Com
essa estratégia narrativa, é bom dizer, plena de liberdade poética, vemos os
homens da Coluna e mesmo as gentes do povo transformarem-se nas figuras
medievais dos cavaleiros andantes das Cruzadas. Mouros e cristãos em ação, às
vezes eletrizantes, que pela prodigiosa fusão literária nos fazem lembrar as astúcias
estéticas que só o cinema pode nos proporcionar. Com roldãos, carlos magnos,
oliveiros e ferrabrazes despudoradamente entrelaçados e confundidos com os
nossos contemporâneos Luiz Carlos Prestes, Miguel Costa e Juarez Távora. Ao
sabor desse compasso binário, a fabulação segue estribada nas reações e nos
sonhos do matuto Teodoro, alma pura do povo, mas esperto e imaginoso amante de
estórias, ouvido colado na oralidade, inveterado leitor que é de cordel e
crente em padim Cícero. Uma natureza assim seria também uma porta aberta para
os eflúvios de utopias salvadoras, de mágicas transformações, de mitos de
terras prometidas e, portanto, logo acreditou que “Prestes era muito homem para
vadear o mar-oceano e virar a Oropa em frege”
Como
soldado, Teodoro dormia na trincheira e sonhava como se estivesse nos embates
antigos, coisas filtradas de suas leituras, que se misturavam com a realidade
em que vivia as agruras de sua gente. Acordado ouvia falar das peripécias da
Coluna aparecendo e desaparecendo, cegando as tropas inimigas com as manobras
geniais do Cavaleiro da Esperança, que punha em prática estratégias
desconhecidas como o nó húngaro e as falsas retiradas que desnorteavam o
adversário. Mas também ficava a par dos desatinos e erros da Coluna, como foi o
caso do ataque a Piancó, na Paraíba, onde os revoltosos encontraram forte
resistência e deixaram para trás o episódio para sempre lembrado da morte do
padre Aristides, que liderava a defesa da cidade. Uma mancha para sempre no
currículo de Prestes. Tudo isso e muito mais é matéria prima nas mãos hábeis de
Oliveira. Em estilo simples, fluente e bem-humorado, manobra ele numa clave
próxima do realismo mágico, abrindo espaço para insuspeitados e sedutores
personagens, alguns retirados da vida real e da crônica pródiga dos sertões de
sua região. É o caso de um certo Manuel Bernardino da Mata, fascinante pelo que
encerra de instigantes contradições, sendo ao mesmo tempo, por artes de uma
curiosa dialética, socialista militante, espírita e vegetariano! Por isso mesmo
tornando-se afamado e recebendo a alcunha de Lenine do Maranhão.
Um
aspecto de Sitiado que veio enriquecer e lhe trazer especial colorido foi o
recurso em que acoplando História e estória recorre à literatura popular da
lavra do gênio absoluto do cordel nordestino, o paraibano Leandro Gomes de
Barros – seu proto criador, fonte em que até Ariano Suassuna chegou a beber.
São de Leandro, sobretudo de sua História da Donzela Teodora, as
epígrafes de abertura de cada capítulo do romance, concorrendo para o clima em
que verdade e imaginação dominam todo o entrecho, o que o coloca entre os
melhores da atual safra.
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(1) Publicado no Correio Braziliense em 18.11.17
(2) Cineastra, professor de cinema da UnB, escritor.
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