domingo, 18 de novembro de 2012

VISITA AO REINO DE PORTUCALE


Edmar Oliveira
 
Na viagem do Piauinauta ao Velho Mundo, com que venho enchendo o saco de vocês há três edições (mas aqui, prometo acabar), não poderia faltar Lisboa. Conhecer a Torre de Belém, de onde partiram os descobridores do mar bravio, é admirar um Vasco da Gama ou um Cabral. Que, como Colombo ou Magalhães, não descobriram outras terras, aqui elas já estavam, mas o caminho pelo mar até outras civilizações. Ali o Tejo parece já o mar. Serpenteia a Espanha com outra pronúncia, como se os goianos chamassem o Parnaíba de Pernáiba, ou algo assim.
Mesmo com a crise que ronda a Europa, achei os portugueses alegres e simpáticos. Não é mais aquele povo que a gente não entendia a língua. As novelas da TV fizeram o milagre da unificação da fala, da gíria, dos entendimentos. E é muito mais comum ouvir-se uma MPB, em qualquer lugar, que um fado. Claro que a lógica portuguesa, que pra nós vira piada, também tinha que acontecer: um de nós pediu ao garçom para provar um doce português, a resposta nos fez rir, mas tinha sua razão de ser: “todos os nossos doces são portugueses” – explicava-se um garçom sorridente por não entender porque fizemos pergunta tão burra.
Lisboa é muito bela, mesmo que um guia nos lembrasse de que, hora por outra, um terremoto pudesse repetir o de 1755 que destruiu a cidade. Impressionante um aqueduto romano, sobrevivente do sismo, a nos mostrar a força da engenharia daquela civilização.
Pombal reconstruiu a cidade e a Baixada Pombalina, em torno da Rua Augusta, que vai do Terreiro do Paço ao Rossio e a Praça da Figueira, constituindo-se numa verdadeira cidade “moderna antiga”. As construções de três andares foram “testadas” com desfile de tropas para simular um terremoto e as casas foram dotadas de poços para a prevenção de incêndio com paredes dos edifícios duplas e maiores de que o telhado (paredes corta-fogo). A cidade possui a primeira rede de esgoto subterrânea moderna. Pombal construiu Portugal e expulsou os jesuítas no reino e nas colônias, sabemos dele aqui.
Bonaparte, o francês abusado, invadiu Portugal no começo do Século de XIX, obrigando D. João XVI vir para o Brasil. Acho que a língua portuguesa e a transferência da corte de Portugal para o Brasil contribuíram para nossa unidade nacional em tão vasto território.
Mas lá em Lisboa, depois de Pombal, o bonde subiu ao Chiado que se transformou em centro comercial e literário. Sentar nas tascas para uma cerveja é um encontro com o passado. N’A Brasileira podemos tomar um drink com a estátua de Fernando Pessoa lembrando que “não posso querer ser nada. À parte a isso tenho em mim todos os sonhos do mundo”. E no largo do Chiado é possível um encontro com Eça, Almeida Garret, Ramalho Ortigão, Guerra Jungueiro ou Alexandre Herculano. A paisagem se faz em sépia com os bondes elétricos subindo a ladeira.
Lisboa conserva nas suas ruas estreitas, nos paralelepípedos, na sua arquitetura um gosto de antigo, mas como nossa extensão saudosa. E os velhos Elétricos ainda andam nos trilhos de Lisboa. A gente já tem saudade antes de vir embora.
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Ilustrações: no postal antigo o mesmo largo do Chiado que visitamos. O Elétrico ainda sobe a ladeira passando n'A Brasileira. Em Sintra, uma vila mágica, tomando uma cerveja com Lord Byron, que ali morou.

FOGO-FÁTUO

 
 
 
 
 
 
Keula Araújo
Nessa hora indomável da noite
Em que o frêmito parece sensato
Eu escrevo um poema
que em nada pode ser sublime:
.
eu digo que cavalgo um lugar-
comum,
não me importa medir palavras.
.
Faço de tua imagem meu altar
de lascívia,
onde tremo enquanto entoo:
.
Vem.
Urge.
Faz.

do que é (de)feito




Não conheço pessoalmente o Aderval Borges. Fomos apresentados no espaço virtual da internet por nosso amigo comum Durvalino Couto (poeta dos bons e aqui já festejado). Dervas (como na intimidade, mesmo a distância, tratamos o Aderval) escreveu este belo poema com as devidas explicações a seguir. Publico-o por merecimento. E gastem um pouco do seu tempo para (não hesito em dizer) esta obra-prima. (Edmar)
 
 O e-mail de Dervas:  
Cabras,
Tenho minhas fixações de caipira iconoclasta. A maioria não diz coisa com coisa. Identificações poéticas (êta adjetivozinho gasto e fartamente picareteado!) Dentre minhas fixações da esfera mais ou menos marxista estão Rosa de Luxemburgo e Walter Benjamin. E dentre as fixações de outras esferas está Marcel Duchamp. Há tempo trabalho com um poema a partir de um tema (também fixação) – rosas defeituosas – tendo como sustentação Rosa de Luxemburgo e uma das várias personas de Duchamp, a cafetina rrose sélavy (grafada assim mesmo, com minúsculas). Figuras opostas: a primeira rigorosamente não vendável e a segunda absolutamente vendável (só o personagem, porque Duchamp nunca se vendeu e sequer vendeu qualquer de suas obras em vida). Lá pelo meio do poema há esculhambações à esquerda (antiga e atual). Esculhambo a dita cuja porque dela vim – me sinto parte – e não conheço nada da direita para comentar, muito menos conheço qualquer direitista; meus amigos (e inimigos) são todos de esquerda. Segue a porra do poema no arquivo anexado. Se tiverem saco, leiam; se não, baleiem, lógico. Evidente que um poema não é apenas pra expor temas. Há toda cadência, ritmo, linguagem, figuras de linguagem, o caralho a quatro.
abç
 
 
do que é (de)feito
 
que perfume pode ter uma rosa
propensa ao despedaçamento
cuja haste rija e espinhosa
nega tato aos pretendentes?
que cor pode ter uma flor
que aira onde paira a indiferença
busca firmeza num solo sem essência
consolo na falta de complacência?
que futuro pode ter uma rosa
que acolhe as glosas dos amantes
mas só se deixa ver por inteira
durante o despedaçamento?
dela não restará pétala sobre pétala
até a memória estará fadada
a se juntar ao acúmulo de restos
para repasto da História
isso é motivo para rezas, Renze?
acorde, cabeça de ovo
pare de fingir que está do lado do povo
direita, volver!
esquerda, vou ver...
por que depois de consumado o ato
opostos brindaram lado a lado
com devotado entusiasmo
enfim alguém achara a solução...
ela fora sempre tão equivocada...
um caso irrecuperável...
de péssima reputação...
muito cedo deixou o norte
para vir de encontro à morte
e cair nos jogos daquele Joguices
para o partido, revisionista
para o sionismo, amante dos pássaros
aves alçam arribação
quando na claridão transluz seu voo
em geométrica ocupação
jamais batem as asas estabanadas
no rumo da escuridão
gostava de Marx pelas dúvidas
não pelas convicções
o materialismo era sua religião
ah, o merecido fim tiveram
ela e aquele Liebknetch!
ninguém acreditou, ninguém
que aquela flor carmim
prestes a pôr um fim aos impasses pelo suicídio
pudesse ter se dado
com tanto afã ao comunismo
de certa forma evitou que o movimento
(pelo menos naquele momento)
ruísse qual chuva de fogo
e devorasse os seus em fês fervente
algozes e camaradas
provaram do próprio opróbio
pois da mesma forma constataram
o quanto fora imprópria
a superioridade imposta sobre ela
o ideal só é puro ao chegar
banha-se entre rebanhos vigiados
esteja nas testas vibrantes dos obstinados
ou nas sobrancelhas espessas dos mais simples
o ideal estimula no coletivo
a resolutividade que falta ao indivíduo
de modo que a existência de uma rosa
pequena e frágil como aquela
jamais se expanda exasperada
para além das grades
que a mantém secreta no jardim
o ideal é a decomposição do momento
no instante do encontro
um degrau da loucura que se doa
em sacrifício por nada
não requer compreensão
a nada se fia e às trevas se entrelaça
como murmúrio alcoólico
num botequim em tumulto
direita, volver!
esquerda, vou ver...
por que viradas as páginas da História
lados que um dia foram opostos
e estiveram a postos
dispostos para a batalha
possam agora erguer as taças
em mútuo desagravo
outrora inimigos, agora amigos
será que no fundo foram sempre assim:
igualmente imundos!
a honradez cedeu lugar ao apogeu burguês
sem paixões e compromissos
mãos que um dia se armaram pela revolução
agora trocam afagos com o inimigo
pela mesma falta de motivos
em meio à ausência de disputas
emerge uma rosa puta
diversa em tudo daquela
esta até no gênero se expressa
sem pudores extremos
não conjuga ideias nos trilhos
mas é exímia nos trocadilhos
pelo sim e pelo não
na cama se oferece como poucas
numa profusão de poses
do alto dos cílios postiços
serve-se com variados artifícios
até o útero extirpou
a fim de manter eretas as tetas
e tê-las sempre tesas
para entreter os amigos
despida de qualquer postura
doa-se no auge da orgia
quando então se extasia:
“se lá vi
nada disso é o que procuro
e nada disso houve”
para essa flor de mundano viço
o que menos importa são compromissos
ideologias não têm utilidade
são artigos de antiguidade
cujos métodos são impostos
pela falta de princípios
por uma Macedônia que jamais se fez
segue em busca de Fernandez
às instâncias militantes
propõe uma fórmula:
troquem o fabulário da luta de classes
pela roleta da esbórnia
para ela no marxismo nada é belo
sua estética é uma velha caquética
incapaz de oferecer o gosto
com sensação de gozo
alheia às falácias dialéticas
essa rosa sem rosário
cerra-se num outro modo de ser
decerto que disseminará pragas
pois só assim se propaga
o direito como sentido de recusa
enquanto causas e coisas se exaurem
segue numa espiral de pétalas
que termina por onde tudo recomeça
embora com o perfume infame das ideias
Dianas anêmicas ainda se banhem
e Acteães afetados se locupletem
sempre haverá rosas de outros tipos
umas dão lugar ao que se deixa
outras a lugares que se penetra
umas se entregam apaixonadas
outras por álgebra hermética
há rosas que nem se abrem
e rosas de aceitação confessa
para manter a essência
todas, abertas ou em botão
estão condenadas à desaparição
pois só assim conseguem antever
o outro lado da nossa ausência


MARE NOSTRUM



 
Lázaro José de Paula
 
TATEANDO AS CEGAS, VEJA SÓ....
COM CINCO GRAUS DE MIOPIA
EU TE ENCONTREI, FILHINHA, AGULHA DOURADA NO PALHEIRO
QUEM DIRIA , QUEM PODERIA SER BREJEIRO ASSIM NESSE TERREIRO ??
SÓ UM GALO SUTIL, COMO EU, QUE NO TERCEIRO CANTO
NÃO NEGO, E NEM RENEGO OS TEUS ENCANTOS
SÓ TU , MORENA, PENUGEM JABOTICABA
MAS QUE NUM FLASH LUMINOSO SE ACABA
PISCA-PISCA ME CHAMANDO
PRA TUA MOEDA DE TROCA
VIS -A-VIS, TETE A TETE
TENTANDO A SÉTIMA ONDA
DO MAR, MARÉ, " MARE NOSTRUM "
QUE ESSA ROSA NÃO TEM ESPINHOS
SÓ PRO MEU DELEITE
PORTANTO, DÁ-ME TUAS TÊTAS
DE MIL E UMA NOITES E MAIS UMA
SEMPRE MAIS E MAIS ALÉM
BAILARINA SALOMÉ DE SALEM

É assim

 
Mudo o assunto do pensamento
Porque as lágrimas querem correr

Como o trem em movimento
 
(Lelê Fernandes)

O Retrato e a Moldura

Eu me vejo pintado na janela
 Um retrato vivo olhando a rua
 Uma moça passa na passarela
Está desfilando e se insinua.
 
          Ela quer pegar o meu retrato
          Pra me colocar em sua moldura
          Mas o meu quadro é um abstrato
          Sonho de um poeta uma pintura.
 
          Vou ter de fugir rapidamente
          De sua sanha de colecionadora
          Desbotar-me e ficar quase sem cor.
 
          Foi o que fiz então exatamente
          E fiquei olhando-a ir se embora
          Tendo nos lábios um riso de rancor.
 
(Geraldo Borges)
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ilustração:  "Rembrandt Desenhando à Janela", auto-retrato em água-forte de 1648.


         

klöZ


Leonino

 
coisa bonita
teus olhos soprando luz
e me ofertando as manhãs
dos primeiros dias
.
quem disse que aquário
não combina com leão?
.
o amor desafia o zodíaco
e se atira sereníssimo
nesse poema cego
 
(Graça Vilhena)

1 verso

A GEOGRAFIA DOS ANOS
No sul da minha saudade
Tem uma estrada de terra
Molhada de chuva fina
Ao norte dessa lembrança
Tem minha avó no pilão
E um cheiro de cajuína

(Climério Ferreira)

Paulo Tabatinga (breve passeio em Teresina - 1990)


domingo, 4 de novembro de 2012

Alcazar


O Calango do Piauí não se cansa de admirar a arte moura de Alcazar...

Das histórias que minha avó contava


Edmar Oliveira
 
Fui encontrar os mouros na península Ibérica. Eu tinha medo deles na minha infância, no interior do Piauí. Minha avó sempre dizia que eles vinham tomar nossas riquezas e raptar nossas princesas. E eu tinha medo de atravessar o Parnaíba, pois achava que eles estavam escondidos nas matas do Maranhão.

Tive oportunidade de conhecer a Andaluzia e entre outros grandes monumentos da herança moura destaco três construções que acumulam a história da humanidade e as nossas raízes.

 Córdoba é uma cidade romana, que depois da invasão árabe tornou-se a capital do domínio mulçumano na península Ibérica. No conservado bairro mouro, com ruas de judeus e cristãos, numa tolerância religiosa invejável, desponta a mesquita-catedral. Maior mesquita árabe (maior que Meca) com uma arquitetura admirável com arcos em ouro e cerâmica numa riqueza de detalhes espantosa, minaretes imponentes. É chamada de mesquita-catedral porque os reis católicos, na unificação do território espanhol e expulsão dos árabes, ergueram uma igreja cristã em seu interior. Mas a catedral não tira o brilho da mesquita que se conserva como testemunha de um povo que marcou a civilização ibérica.

Em Sevilha o palácio de Alcazar sobressai na sua beleza. Há muito alcazares em Espanha, mas o de Sevilha foi suntuoso em tal monta, que depois da reconquista dos reis católicos serviu de morada a Felipe III de Castela e a outros monarcas. Mais tarde, Pedro I de Espanha, o Cruel, fez ali o seu castelo, aprimorando a obra dos árabes (interessante fascínio de um rei pela cultura inimiga) e Alcazar é o maior exemplo de arquitetura mudéjar em Espanha. Um assombro aos olhos.

Mas de todos Alhambra em Granada é o mais impressionante. Córdoba já havia tombado. Os reis católicos retomavam o território árabe conquistado. Em Granada, o último reduto mulçumano, ergue-se Alhambra, o paraíso na terra. Uma cidadela monumental. Pobre e simples por fora, como prega o despojamento ao terreno do mouro. Rica por dentro, como deve ser o interior do homem. Impressionante o sistema hidráulico herdado (e aperfeiçoado) dos romanos: em cada cômodo uma fonte de água fresca com sistemas de tanques que regulam a vazão de cada bica. A decoração, embora pobre de ouro, é muito rica em detalhes em cerâmica e gesso. Os jardins labirínticos e suntuosos com piscinas naturais não deixam dúvidas de como se pode erguer um paraíso na terra. Os mais famosos elementos da arquitetura islâmica na Espanha podem ser admirados ali. Fabuloso.

É tão marcante a influência da civilização islâmica na península ibérica que as batalhas de conquistas atravessaram o Atlântico e as lendas que minha avó contava, no interior do Piauí, traziam a cultura daquele povo conquistador nos nossos medos. Agora que pude vê-los não tenho mais medo. Mas os admiro sem poder dizer o quanto.

Um espectro ronda a Europa e não é a ameaça de Marx. A migração árabe pode fazer nova invasão.

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fotos: Alhambra no alto. Em sequência: Mesquita de Córdoba, Alcazar, Alhambra (teto), Alhambra (paredes)

TAROT MAROTO

 
 
Lázaro José de Paula
 
O FARO DO CÃO É BUSCADOR
O OLHAR DA ÁGUIA REVELADOR
O FUROR DO TIGRE DEVASTADOR
O VÕO MAIS ALTO É DO CONDOR
MEU CORAÇÃO DE BOM LADRÃO
TÁ COM O SENHOR
QUAL A TUA CASA DO ZODIACO, MEU AMOR ?
TEU ASCENDENTE & DESCENDENTE
TEU FINO PENTE
TEU FINO TRATO
RASGANDO A PRESA
DE FORTALEZA
QUE TEU ABRAÇO É DE MATAR
TAMANDUÁ
BANDEIRA BRANCA, MEU AMOR
QUE CARTA É ESSA DE TAROT ?
MUNHA CIGANA QUE É TÃO BACANA
COPACABANA QUE NÃO ME ENGANA
É A VELHA MORTE O ZERADOR
QUE SOY AMIE
QUE LITLLE WING É ESSE BEM-TE-VI ??
VAMOS , AGORA, NÓS TUDO DE NOVO;, BEIJA- FLOR
É A VELHA MORTE , O ZERADOR

Homenagem a Gonzaga


A NAVE DO INFINITO



No fim, o infinito é bonito:
Uma explosão de estrelas,
Buracos negros
Vagos caminhos das constelações
Planetas aflitos vagando no nada

(Olha pro céu, meu amor)

No fim, o infinito não é o céu:
Não tem querubins,
Nem nossos amigos mortos
Nem a mão direita de deus acenando

(Vê como o céu está lindo)

No fim, o infinito é um barco:
Uma nave em fuga no mar do espaço
Enfrentando imprevistas tempestades
Na busca de atingir seu recomeço

(Olha praquele balão multicor)


(Climério Ferreira)

fotografia


Como dói uma fotografia
Na distância amarelada do tempo

(Paulo Tabatinga)

Haikai do Machado


 
REFLEXÃO MACHADIANA

Lição para meditar:
"Antes cair das nuvens,
que de um terceiro andar".



(Cinéas Santos)
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foto de Boa Esperança vista das nuvens: Edmar

O cronista Rogério Newton


Geraldo Borges
 
Fiquei impressionado com a leitura dos livros  de crônicas do poeta Rogério Newton. Três livros que, acabei de ler, ultimamente. Pescadores da tribo, 2001, editora Pulsar, orelha de Paulo Machado, Conversa escrita n’água, 2006, orelha de Esdras do Nascimento, Grão, 2011, edição do autor, orelha de Airton Sampaio e Paulo Machado. Pescadores da tribo, sem dúvida, são eles que escrevem  n’ água e multiplicam o grão, como o poeta  semeia a palavra.

Seus livros  dão  testemunha cabal de que a literatura piauiense está bem representada e bem servida. O moço é de Oeiras, veio  para Teresina lá pela década de setenta, justamente, quando a cidade estava começando a tomar outro rumo, a “ modernizar-se “ sob o signo da ditadura. Na capital do Piauí fez cursinho e depois vestibular, formou-se em Direito. E aclimatou-se  ao calor da capital do Piauí.

 Pelo teor de suas crônicas vê-se que tem uma grande bagagem e linhagem de leitura, e passeia por muitos temas, extraído do cotidiano da cidade de Teresina e Oeiras, de forma que seus textos são variados. O autor escreve com emoção, e,  conseguiu me emocionar, a mim, que sou um leitor calejado. Senti no autor um toque de loucura e ironia brilhando nas entrelinhas  de  algumas de suas crônicas.

Arisco-me a dizer que o seu processo de criação, na maioria de suas crônicas vem mais de  uma súbita inspiração do que mesmo  de um lento planejamento técnico

 Outra coisa que notei em seu texto foi a criação dos cabeçalhos, quero dizer, dos títulos. Percebi que quase todas as suas crônicas  recebem o titulo de um verso, uma frase,que está escrita no fim do texto, causando  surpresa  ao leitor.Advém daí a hipótese que  suas crônicas nascem como grãos  de experiência lírica e emocional e depois ganham um título para que se faça o arremate..

               Sempre gostei de crônicas, e, por isso mesmo, já não me preocupo em diferenciar a  crônica do conto.  Concordo com o que diz Otto Lara Rezende. Mas o que é a crônica? Aqui a porca tore o rabo em discussões bizantina,  Mesmo assim, para o meu gasto, li algumas das crônicas de Rogério Newton como se tivesse lendo contos, o Engraxate, por exemplo, é um verdadeiro conto. Mas, isto é um detalhe sem importância.

 O mais importante é que a literatura piauiense está de parabéns. E nem toda mundo sabe. Por que, embora Teresina, seja uma  cidade de certo nível cultural, nem todo mundo está disposto a gastar um tostão com livros, principalmente quando se trata de literatura.O estado virou mecenas e todo mundo só quer livro se for de graça.

Isto pode ser explicitado pelo próprio Rogério Newton em uma de suas crônicas, - as traças

               “ Perdoem a auto – referência, mas outro dia publiquei um livro e fui a uma livraria colocar dois exemplares à venda. A balconista me levou aos fundos da loja. Descemos os degraus de uma pequena escada, e ela me introduziu no gabinete gelado do gerente. Este cidadão quer deixar uns livros  em consignação.Ela disse cidadão, mas o tom da voz era de quem joga carniça aos urubus.

               O gerente estava muito ocupado olhando umas faturas. Ao fim de alguns instantes, desviou a atenção dos papeis, olhou para mim por cima dos óculos, perscrutando – me como se eu fosse uma nota fiscal. Ao cabo do exame, que durou  alguns segundos, disparou. É livro didático? Antes que eu abrisse a boca, disse então não serve, não dá futuro. E voltou as faturas.

                Estava de pé e continuei: escuta, esta não é a única livraria  de Teresina que possui uma estante só de autores piauienses? Tinha mais não tem mais. Mandei tirar. Não serve para nada. Ninguém  compra.”

               A crônica continua, e eu convido o leitor a visitá-la Encontra  se no livro Pescadores da Tribo.

               Volto a reafirmar a grandeza e singeleza  das crônicas de Rogério Newton. A que eu citei  é uma crônica de desabafo, feita talvez no calor da hora, mas necessária.

Mas posso  me reportar a uma crônica que vem da sua infância profunda entrando na adolescência; chama --se  --- os olhos de garrinha.Considero uma crônica antológica.Trata-se das impressões de um menino em relação ao seu ídolo, um jogador de futebol.

               “ Foi talvez por meio de meu pai que ouvi falar pela primeira vez em Garrincha.Os gestos e a fala grandiloqüente acresciam cores às façanhas do maior ponta- direita que o mundo  viu jogar.

                Depois que aprendi a ler o fascínio ao jogador só fez aumentar, e eu o imaginava o que era ou tinha sido, um deus dos estádios, de pernas tortas, mas deus.

               Até que um dia, ouvi na rua, que Garrincha viria jogar em Oeiras. Fiquei intrigado: o que faria um deus numa pequena cidade do sertão brabo do Piauí...

               De noite, fui ver Garrincha, já banhado, sentado numa cadeira de espaguete, olhando o nada. Um troféu enorme, comprado pelo prefeito, brilhava ao seu lado. Era como se não existisse.

               Do fundo da década de 70, numa casa de paredes nuas de uma rua torta, que inicia na Praça das Vitorias e termina no Rio Pouca – Vergonha, jamais pude esquecer Garrincha e o profundo abismo de seus olhos tristes.”

               Garrincha e Oeiras, um personagem decadente, dentro de um cenário em ruínas. Um sutil toque de loucura e inspiração.

Recomendo ao leitor, que quiser conhecer melhor a literatura piauiense, os três livros de Rogério Newton. Gostei de seu estilo e vi nele muita leitura de Graciliano Ramos, Clarice Lispector, O G Rego de Carvalho, O Novo Testamento. Mas o que mais me impressionou no autor foi a leveza  com que escreve seus textos. Prometi a mim mesmo que vou reler suas crônicas.   Porque um bom autor deve ser relido.

quintal do vizinho

Mário Faustino

 
Quem fez esta manhã, quem penetrou
à noite os labirintos do tesouro,
quem fez esta manhã predestinou
seus temas a paráfrases do touro,
a traduções do cisne: fê-la para
abandonar-se a mitos essenciais,
desflorada por ímpetos de rara
metamorfose alada, onde jamais
se exaure o deus que muda, que transvive.
quem fez esta manhã fê-la por ser
um raio a fecundá-la, não por lívida
ausência sem pecado e fê-la ter
em si princípio e fim: ter entre aurora
e meio-dia um homem e sua hora.
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desenho: Netto de Deus