quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Estômago



O Piauinauta sobrevoa aquele estômago vazio dos piauiseiros na seca que está de acontecer de novo por essa era do século XXI. Hoje eu vi reportagem de gente que anda pra mais de duas léguas pra tirar água barrenta de um poço no sertão. Pensava que este século enterrava o outro. Ledo e ivo engano, Lêda minha conterrânea...

o homem e a faca

Edmar Oliveira

O homem tinha pra lá de medo do riscado da faca. O outro era valente de aventurança sertaneja. Onde a peleja importa o tino, o desafio. Não se fia por nada de motivos da política. Antes fosse amizade. Se macaco ou se soldado, importava primeiro a valentia que o lado de se posicionar na contenda. E de quem fosse amigo sincero nas armas de matar inimigo, que inimigo é contraponto pro amigo. O sincero, o querer bem de gostar como irmão fosse de sangue. Mas muito se fazia depender da convivência que até irmão de sangue vira pra outra banda. E quem tivesse na outra banda tava na ponta da faca. O outro era assim altaneiro e cabra de valentias testadas. O homem é que era morredor. E aí já perdeu a briga...

ABOIO

Geraldo Borges



De primeiro
Quando eu era menino
Meu pai foi vaqueiro
Do meu destino.

O tempo foi passando
E a boiada cresceu
Meu pai foi aboiando
Até que desapareceu.

Virei um boi velho
Girando o meu engenho
Na roda da vida

Sem ouvir conselhos
Apenas me empenho
Em jogar a partida.

GRITO



Ana Cecilia Salis


Prefiro o choro derramado
que faz soluço,
que incha os olhos
que culpa alguém
e faz dormir...

A esta única gota
que cai do olho,
e rasga a pele
e cala a boca
e sustenta a vigília
que pressente a morte.

Teresina num supetão

Paulo Vilhena


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Edmar, O Piauinauta está, mais do que ótimo, necessário. Por favor, não deixe de fazê-lo. Vou escrever, aqui mesmo, "de supetão", uma pequena coisa e se você achar que deve editar, você sabe:

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Não é que Teresina seja uma cidade pequena. Quase um milhão de habitantes?Não é culpa nossa. Nem que seja uma cidade atrasada. Aqui convivem espécimes da raça de todas as origens. Nossos mamelucos são fidalgos, e nossos portugueses são loucos por negras e índias. Até abandonaram o coitado do Fidié, na guerra da independência.

Não que Teresina não tenha evoluído: as moças já não rodam na praça PedroII. O Teresina Shoping é bem mais confortável. O Atlantic City recebe abanda Calipso com uma estrutura que nada deve às melhores casas de show de Chicago. E se Hollywood era fashion, lascou-se: nós também temos nosso Beverly Hills. Na área da construção civil, aí é que ficou porreta:

Teresina tanto se internacionalizou (é a globalização), que estamos prontos para receber turistas do mundo inteiro. E com uma grande vantagem: nem precisamos mais falar português. The International Theresyna que o diga: Irineu'fotos, Pallazo Poty, Atlantic City, San Pietro Residence, Aldebaran Ville etc.

Sem contar a grande vocação que Theresina revela com relação à sua capacidade quase esperántica de atrair esses milhares de turistas, mesmo que venham de Caxias, Sobral ou - e olhe lá - Araripina.

Ontem mesmo fui testemunha desse fenômeno: a agência de um grande banco resolveu a poliglotia. No estacionamento, uma belíssima placa adverte:"parking rotativo".

O que Teresina não parece ter mesmo é a cafonice do passado. Aquela cafonice que fez e faz nossos filhos e os filhos dos nossos amigos honrarem o Piauí. Aquela cafonice que fez e faz dos piauienses campeões das disputas de vagas em vestibulares, em concursos públicos, em medalhas de ouro no esporte (A Sara Menezes não atrai mídia, a bola da vez é a"Gysele BBB), com a dignidade do silêncio.

O que Teresina não parece mais ter é uma década sufocada, que fez os jovens talentosos da cidade ousarem com o superoito, com belíssimos poemas e lindas músicas, com arrojados projetos culturais, com a coragem política e com o destemor das paixões. E com Chico Buarque. Porque nem existia televisão, e ninguém morreu. E nem existia "banda calipso", e ninguém ficou histérico.
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Recebi essa crônica do Paulo Vilhena, mestre em jornalismo, professor da Universidade Federal. O mais surpreendente e que fui, com meus colegas de época, objeto da tese do mestre: imprensa alternativa no Piauí. Isso traz orgulho com velhice, o que é uma merda...

Mas você sempre será bem vindo neste espaço, Paulo. (Edmar)

Foto da Igreja do Amparo: Patricia Basquiat.

Psicanalista

1000TON

DOMÉSTICAS!




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Pancada! De volta ao Piauinauta, o poeta piauiense Durvalino Filho e o poeta paulista Aderval Borges juntam suas forças e saem em defesa das domésticas de todo o Brasil, numa correspondência que mantêm há anos, onde acertam os ponteiros de suas idéias nem sempre politicamente corretas. Agora, Aderval e Durvalino (Dervas e Duda, respectivamente, como se tratam nas missivas) saem de pau na classe média idiotizada do país, principalmente aquela que se acha de esquerda, bem pensante e pouco atuante.
Durvalino defende o direito que as domésticas têm de, nos lares onde trabalham, saberem que estão sendo filmadas, como acontece com todos nós ao nos depararmos com a infeliz plaqueta de todos os dias que diz: SORRIA! VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO.
Aderval radicaliza ainda mais: diz ele que as novas gerações que estão saindo só não são mais idiotas devido aos cocorotes e pescoções que um dia pegaram dessas heroínas do nossos lares. Confiram.


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Caro Dervas:


Eu sei que você lembra – às vezes chegávamos no Sujinho, na Vila Madalena, depois do ensaio dos Verdadeiros Artistas, e o clima era de esbórnia. No meio daquela confusão de bêbados e doidões, era comum nos depararmos com crianças dormindo em duas ou três cadeiras agrupadas, enquanto pai e mãe festejavam alucinados (às vezes só a mãe, outras só o pai). É isso mesmo! Falo em nome das empregadas domésticas, essas mesmas que praticamente educam os filhos desses putos e agora vivem sendo levadas para as delegacias, sob a acusação de agressão às crianças. Ora veja. Pai e mãe vão trabalhar na selva da cidade, vez ou outra ligam para as crianças em casa (na maioria das vezes nem se lembram), trabalham duro e, quando chega o fim do dia, esses putos não resistem e partem para a “happy hour”. Muitas vezes emendam e chegam em casa lá pras tantas, a mil por hora e com tudo (tudo mesmo) na cabeça.
Os pestinhas, portanto, passam o dia infernizando a vida da pobre doméstica, que tem que lavar, passar, fazer comida, arrumar a casa e ainda cuidar dos putinhos. Se estes não comem, a patroa acusa a qualidade da comida. Se bagunçam a casa, a culpa também é da doméstica.Ora pombas, essas pobres mulheres que moram lá na casa do caralho e que têm de pegar até trem para chegar em casa não podem nem dar um cascudo nos pestinhas para que comam tudo e parem de sujar o tapete! O que os patrões fazem? Escondem entre os livros que nunca mais leram uma sorrateira câmera digital de vários megapixels para flagrar a pobre doméstica dando um brogue na cabeça do desgraçado do moleque que não quer comer ou que está pegando em sua bunda.
Protesto! Exijo que os patrões, doravante, sejam obrigados a afixar em todos os cantos da casa a célebre plaqueta que a gente vê nas padarias, nos postos de gasolina, supermercados e até nas empresas onde trabalhamos: SORRIA! VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADA.
Em nome das domésticas, reivindico esta providência. Vamos levar essa questão para o sindicato dessas heroínas dos nossos lares. Tenho dito.

Duda
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Duda:

Esteja dito e reafirmo embaixo: as domésticas merecem todo o nosso apreço e estima, principalmente pelas merecidas porradas que dão nos moleques. Tô numa fase que não suporto mais moleques ou molecas. Estas, só levo em consideração quando têm um bom chumaço de pelos constituído acima das xotas. Meu instinto de paternidade está a zero. Por isso, minha solidariedade com as empregadas "do lar" é total.
Hoje, pus no clipping matéria sobre as projeções populacionais do Brasil e doutros países pra 2050. Vai decrescer a nacional, mas bem menos do que deveria. Certamente colaborarão em muito os milhões de sem-terra enfurnados em acampamentos pelo país afora, fazendo porra nenhuma, só mamando umas canas e mandando ver na senhora sem-terra, em prol de uma extensa prole de sem-terrinhas. Pena que não possam ter suas empregadas domésticas sob o barracão de lona, pra meter umas porradas nesses mal nascidos.
Quanto à classe média a que você se refere, prossegue sendo o primor da babaquice. Especialmente a de esquerda, que se acha bem-pensante. Os filhos desta, principalmente, é que merecem uns bons petelecos educativos. Para não repetirem o percurso dos pais. Estes (os pais machos) passam a vida na farinha boliviana e nas cervejadas diárias, não lêem porra nenhuma, não vêem porra nenhuma, mas têm extensíssimas opiniões formadas sobre tudo. Quando cabeças-brancas e barrigudos, contam lorotas - para os infelizes que se prestarem a ouvi-los - sobre as glórias do passado. Os pais fêmeas (as mães) dão pra todo mundo quando atrativas - graças a Deus, pelo menos isso - e depois que desabrocham as pelancas, viram místicas retardadas. Ainda bem que estão lá as domésticas pra casquetar uns cascudos nessa molecada, pra jamais serem assim.
Com exceção das domésticas, de todos que trabalham de verdade e das mulheres com xotas admiráveis que se dão a todos os prazeres possíveis, não tenho mais qualquer compaixão pelos da minha espécie. Mas minha compaixão é sobretudo baixíssima por crianças, tendo em vista a alta probabilidade de um dia serem parecidos com os pais.
Na linha da tua indignação com as afrontas dos pais às empregadas domésticas que dão uns merecidos corretivos em seus pimpolhos sem limites: Enervam-me atrizes/atores/manequins/cantores/esportistas e outros de formação limitada que arrotam publicamente que acreditam em Deus e soltam aquela ladainha melosa e idiota na qual até o bom Roberto Carlos já caiu.
Adorei uma entrevista do Edmundo (atualmente no Vasco), com a sinceridade que lhe é peculiar, dizer que quando um colega se declarava "atleta de Cristo", ele procurava manter distância, para não atrapalhar a dedicação do outro a Jesus.
Acabo de ler nas páginas dos limpa-cus do dia que um bostão chamado Fábio Assunção, ator de novelas, está licenciado da Globo pra se tratar. Caso evidente de cheirador que passou dos limites e não está mais conseguindo controlar a rotina de trampo. Daí o puto anuncia que vai tratar da saúde e que "Jesus guiará meus passos". Aiaiai.
A exemplo de Darlene Glória e Gretchen, que deram pra Deus e o mundo, e agora só dão pra Deus (viraram evangélicas), toda celebridade gostosa que passa do ponto de ter altos atrativos sexuais, se torna fervorosa devota. Até Gal Costa tá nessa.
Tomara que o Angeli tenha saúde, depois dos trocentos picos que já tomou, pra inseri-los todos na sua gigantesca lista de personagens idiotas da República dos Bananas.

Dervas


1 POEMA DE GRAÇA

Graça Vilhena



faça de conta

que o amor

é copo d'água:

basta-lhe a sede

e não o mar
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Assim foi postado por Climério. 1 poema de graça. Já gosto de Graça Vilhena ha tempos. Poeta piauiense, de uma familia de letristas. Salve Graça, sempre benvinda no Piauinauta (Edmar)



Ao Relento

Keula Araújo


O seu abraço
baú de guardados
onde eu deitava,
insones, meus sustos


Onde entrava,
fôlego preso,
pra respirar, trancada
meus absurdos
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Ainda não conheço a Keula. A moça. A alma conheço e me apaixona, com todo o respeito do poeta. Este poema recebi ainda quentinho e perguntei por e-mail:
"E esta pérola tem título, princesa? Edmar"

A resposta veio em rente e certeira:
De tão recente, ainda nem foi batizado. Vamos lá...Vou chamá-lo, então de:
AO RELENTO
Keula Araújo

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Como o Piauinauta tem data pra nova edição, demorou e ela me mandou outro e-mail dizendo que o poema fora publicado no site do Joca Oeiras. Faz mal não moça. Um poema dessa beleza não pode ser de um apenas. (Edmar)

URGÊNCIA PARA O FUTURO



Edmar Oliveira

Acabei de ler o livro da Luciana Hidalgo. Literatura de Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura (Anablume Editora, SP, 2008, 250 pgs.). A moça mostra um conhecimento denso e consistente da obra e da vida do mestre dos inconformes. Partindo da literatura em que ele se faz na obra, desde o Isaías das Recordações, do Augusto e do Gonzaga da Vida e Morte, do Policarpo Quaresma, até ao Vicente do Cemitério dos Vivos, refazendo o Diário do Hospício. Faz um profundo apanhado do Diário e do inacabado Cemitério para mostrar mais urgência na literatura que o hospício poderia causar. Mas desenvolve um minucioso estudo de toda a obra, inclusive crônicas e peças avulsas publicadas na imprensa da época. Louvável o trabalho de pesquisa de Hidalgo. E um presente inestimável para nós, que queremos o Lima vivo.

Na síntese do pensamento do Lima ressoa a frase “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”, justificando a urgência da literatura do mulato. O trabalho de Hidalgo é muito rebuscado, parece mais um trabalho de um acadêmico, historiador, sociólogo ou que mais. Não estou a desmerecer a jornalista, mas dizer que o aprofundamento é digno de um trabalho além do campo jornalístico. É da doutora em Literatura Comparada e Pós-doutora. Procura a construção mesma do conceito de “Literatura de Urgência”.

Portanto a competência dos comentários sobre o trabalho fica aquém das minhas possibilidades palpiteiras. É preciso um moço mais graduado que eu pra se levar a sério resenhar tal trabalho. Me deliciei com os detalhes das urgências literárias do Lima.

Mas encasquetei com se achar ressentimentos nas anotações limabarreteanas. E de que ele queria o reconhecimento para a entrada, pela literatura, nas elites. Não me soa assim.

Desconto se faça no meu pobre palpite. Mas acho que Lima se descobre implicante e não ressentido: “implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada; tenho implicâncias”. Na minha terra, tem um verbo digno dele: “inticar”. Inticar é verbo do dialeto nordestino que pode ser traduzido como “troçar”, “caçoar”, “zombar”, “gracejar”, “implicar” ou algo semelhante, mas que para o vocabulário nordestino é tudo isso junto e muito mais ofender. É esse verbo que acho pertinente ao Lima. Implicar ofendendo. Arranhando a alvura dos compromissos formais da época.

Me parece que Lima não consegue viver o seu tempo. Não cabia nele. Ele estava colocado além do tempo, além das burrices, além dos borra-botas, dos poderosos da época. Todo o seu comportamento inviabiliza o seu existir. Isaias critica todo o entorno beletrista de então. Insuportável. Fica fora do Gonzaga em Augusto, para os dois se colocarem na contramão da mediocridade. Como se Lima e Barreto pudessem existir aos pares para suportar a realidade. No Policarpo consegue zombar de si mesmo de das idéias que sabia serem vistas como policarpianas pela elite de então. No diário do hospício já constrói Cemitério dos Vivos e se faz em Vicente um crítico dos donos da loucura com palpites certeiros sobre os erros de então. E também não cabe no meio dos pobres, do subúrbio, dos doidos: “isso aqui tá parecendo um colégio”, fez um doido no hospício criticando Lima e seus livros, numa parte bem humorada do Diário.

Lima não cabia no seu tempo. E tinha que fazer uma literatura de fora daquele tempo. Mesmo que usando todo o entorno local para ser universal. E a si também se colocava por fora do tempo. Quase um Garambombo, o invisível, personagem de Manuel Scorsa que se sente invisível por não ser levado a sério, Lima vai de bêbado e sujo pra Ouvidor ver a Belle Epoque passar. Inticava com tudo. Implicava ofendendo. Só se mostra ressentido no diário íntimo, porque não se consegue ficar tão longe de uma época vivendo nela, mesmo estando fora. Na intimidade do diálogo com o mundo em que teimava em viver. Mas no conjunto da vida e obra é um implicante, replicante que “inticava” com todo mundo.

E a síntese: “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”. Acertou nas duas pontas: matou o mulato e lhe deu tudo que ele queria dela. Acho simples assim. O reconhecimento em vida seria o fim do Lima que todos admiramos. E um detalhe: o reconhecimento por Monteiro Lobato em vida foi porque o paulistano não tinha de conviver com Lima Barreto. Um dia lhe vendo bêbado e implicante não teve coragem de se apresentar. Lobato fez de conta que não conhecia Lima. Ele já estava lendo Lima Barreto no futuro...

Não discordo aqui da escrita de si como uma literatura de urgência, como constrói com maestria a Luciana Hidalgo. Mas me atrevo a acrescentar Lima Barreto no rol dos escritores do futuro, porque não se comportavam (com todos os sentidos) na sua época. E, assim, colocaria Lima na companhia de Sousândrade, Gregório de Matos, Quorpo Santo e Torquato Neto, só pra começar e sem comparar os talentos, que cada um tem o seu cada qual.
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Luciana lendo Lima é montagem minha.
Publicado antes na Casa de Lima Barreto, site ali embaixo.

A DÚVIDA DA FÉ

Climério Ferreira



A morte pode ser até

A vida que perde a dúvida

Ou a dúvida que perde a fé

Abolição da escravatura: Brasil - EUA

Geraldo Borges


A princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Foi aplaudida. Mesmo assim a história é mais objetiva que o sentimento das pessoas. E se formos ver com clareza o processo da Abolição da escravatura no Brasil, vamos ver que a Abolição começou na verdade com a iniciativa da Inglaterra, movida por interesses econômicos da chamada Revolução Industrial. A Inglaterra já estava de olhos no mercado brasileiro desde a vinda de Dom João VI para o Brasil.

A luta pela Abolição, oficialmente falando, começou pela lei instituída na Inglaterra contra o Trafego Negreiro, em 1850. Pressionados pelos abolicionistas o governo cria a lei do Ventre Livre, em 1871. As crianças nascidas a partir desta data seriam livres. Os pais que cuidassem delas. Os patrões lavavam as mãos. As crianças deixavam de ser escravos, mas para sobreviver teriam de ser agregados de algum latifundiário.

Depois veio a Lei do sexagenário, em 1885, quer dizer, os escravos com a idade de sessenta e cinco anos, que tinham envelhecido no cabo da enxada, no engenho, no eito, agora podiam descansar, morrer em paz, já que não acrescentavam mais valor para o patrão: era peso morto.

Com essas duas leia gradualmente a Escravatura foi sendo abolida através de um processo biológico e demográfico, quer dizer, a população escrava tendia cada vez mais a desaparecer, acrescentando, também as alforrias que ias acontecendo. Claro que a Lei do Trafego Negreiro não era comprida à risca, mesmo assim, serviu em parte para inibir a vinda de mais negros da África.

A elasticidade de nosso processo de Abolição da Escravatura ficou tão poroso que os escravos receberam a festa da Lei Áurea, sem muita perspectiva para um futuro imediato. As crianças do Ventre Livre estavam agora com dezoito anos, apenas com o direito de ir e vir, e se agregar em alguma fazenda. Os velhos estavam morrendo. E deixaram uma geração de mão de obra domestica mal paga por este Brasil a fora. O governo deu-lhes liberdade, mas não lhe deram terra. Liberdade sem propriedade não existe. O problema até hoje continua. Os donos do Brasil preferiram os imigrantes europeus para cuidar da lavoura.

Acredito até que não havia mais escravos efetivamente quando a princesa assinou a Lei Áurea, que tudo não passou de uma pantomima oficial, com discursos e fogos. Casso existisse a porção era tão mínima, que eles quase nada representavam para acrescentar valor na economia, a não ser a de subsistência. Mesmo assim a herança da escravidão continua sendo um dos maiores estigmas culturais que carregamos. Pois teimamos em disfarçar uma cor que pulsa em nosso sangue, já que grande parte dos filhos dos latifundiários tinha, como ama de leite filhas de escravos..

Já nos Estados Unidos a libertação dos escravos correu de modo diferente. A escravatura concentrava-se no sul dos EUA. Alguns romances de Mark Tawin e Faulkner mostram muito bem como foi a escravidão naquele país, principalmente às margens das cidades do rio Mississipe, a Cabana do Pai Tomas, de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852, é uma referencia importante para se conhecer o cenário humano da escravidão nos EUA. Lá que se saiba não foi a Inglaterra quem forçou a Abolição, o problema era mais da unidade interna do país.Os Estados Unidos do Norte queriam expandir sua economia, criar um forte mercado interno, e acabar com a classe dos aristocratas rurais do sul que viviam da exportação de tabaco e algodão principalmente, a custa da mão de obra escrava..Em represália os estados do Norte os sulistas ameaçaram criar os estados Confederados da América, isto foi o estopim da guerra. A leitura do romance, E O Vento Levou, contribui bastante para se entrar nas paginas da história do sul escravista.

O mais importante da Abolição da Escravatura nos EUA é que ela foi feita a partir da deflagração de uma guerra, comandada pelos brancos, claro que com a participação dos negros. Em 1859, um levante de escravos foi reprimido na Virginia e seu líder John Brow foi enforcado, transformado - se em mártir do movimento abolicionista...

Enquanto isso, em 1865 o Brasil estava lutando na Guerra do Paraguai como espoleta da Inglaterra, fazendo parte da Tríplice Aliança, junto com a Argentina e Uruguai. Nessa época o governo oferecia alforria aos negros que se alistassem para a guerra. Claro se voltasse vivos. Muitos deles eram obrigados a tomar o lugar de filhos de latifundiários, que eram recrutados. Uma boa parte da população negra foi dizimada.

Para resumir a diferença entre a luta pela Abolição da Escravatura nos EUA e no Brasil, é que, no Brasil o escravismo caiu de podre junto com o Segundo Reinado, após um refrigério aqui, outro acolá. E nos Estados Unidos, constitui-se em uma saga de bravura. Juntamente com a Abolição da Escravatura nos Estados Unidos procederam-se certos Atos importantes como a do Homestead Act que fornecia 160 acres de terra a todos aqueles que cultivassem a terra durante cinco anos, enquanto no Brasil existia uma lei estabelecendo que só poderia adquirir terra quem pudesse comprar.

Terminada a Guerra Civil Americana, Os Estados Unidos restabeleceu a sua unidade economia e territorial, e continuou se expandindo, Depois da guerra teve de lutar contra o preconceito racial avassalador preconizado pela Ku – Klux – Klan.

Hoje coroando a sua luta, apresenta ao mundo um presidente negro.

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Geraldo, o velho professor de História nos brinda com aula no dia de hoje.

OBAMA, ACM E XANGAI

1000TON

Que eu torci, torci...Como se fosse pro mengão.
Que eu fiquei contente, fiquei...O Obama está nas alturas ! Foi realmente um barack ele ter ganhado as eleições por lá, as diretas e as indiretas...
Agora minha gente, passado o momento da empolgação, vamos refletir um pouco: ele vai representar os americanos, foi eleito pelo povo americano, para defender os interresses dos americanos.
Mas já pensou se o ACM deles- notaram a semelhança com o nosso coronelzão reaça do interior ?- ganhasse essa eleição? REVIVAL: “ACM REENCARNA EM SOLO AMERICANO !”, já estava até antevendo as manchetes dos jornais...
Só resta agora ao Mccain voltar pra casa com o rabo entre as pernas, ou então virar o (emicí) MC CAIN, e tentar emplacar um sucesso funk, cuja letra diz assim:

Eu- sou- sua- cachorra , sou- sim
Quando- eu- não- te- agrado
Você- me- chuta- o- rabo
E- eu- saio- berrando- assim:
Caim, caim, caim, caim !...

O meu medo é que parte do obamaeleitorado, e não são poucos, os que ainda pensam que a capital do Brasil é Buenos Aires, se encham de protecionismos para se reerguerem da recessão e distribuam trolhas para nosotros aca.
Não posso esquecer da famosa “Aliança para o Progresso” , durante o governo demoKennedy, numa cooperaç..., digo, cooptação dos governos da América Latina para evitar que surgisse uma nova Cuba por aqui, quintal demarcado por eles, onde só “dever‘riamm prolifer’ráarr os dictadur’ras amigos de nossas inter’résses”.
Na época chegavam sacos e mais sacos de 50 quilos de leite em pó, com duas mãozinhas desenhadas se cumprimentando, uma com a bandeira do Brasil e outra com a bandeira americana. Eram mandados pra cá para alimentar nossos nordestinos e favelados famintos, enquanto as voluntárias ianques (tipo ‘pioneiras sociais” do tempo do Juscelino) distribuíam pílulas anticoncepcionais para as nossas pobres.
Eles também queriam privatizar, nessa época, as nossas Universidades, lembram? Eu lembro, eu estudava na Faculdade de Arquitetura do Fundão, vigorava o famoso 477, decreto da ditadura que, nas entrelinhas dizia: “mais de dois estudantes juntos já é aglomeração - devem estar tramando alguma coisa - isso pode virar balbúrdia - bota no camburão !”. e botavam no camburão também: barbudo, rípi, maconheiro ou comunista. “ - é tudo a mesma merda ! Tás pensando o quê?”.(naquela época eu tava fudido, era um pouquinho de tudo isso junto, mas sobrevivi!...)
Engraçado... depois quem botou uma pá de cal nessa tal de aliança para o progresso foi o escroto do Nixon, um republicano... Estes, por sinal, historicamente , todos sabem, foram mais generosos com o povo tupiniquim do que os democratas.
Mais recordações me vêem à cabeça; na década de 40, embalado na política de boa vizinhança dos ianques, foi criado nos estúdios de Hollywood pelo Disney, um papagaiato muito simpático, o Zé Carioca, aquele que apresentou ao Donald Duck a nossa boa cachacinha...Afinal de contas: “ NÓS É JECA, MAIS É JÓIA!” (Juraildes da Cruz e Xangai).
Enquanto isso vamos protegendo o nosso fi-ó-fó, aguardando até eles botarem a política-externa- para- a- América- Latina deles pra fora. Só aí é que agente vai sa
ber o tamanho dela !...

E SE OBAMA FOSSE AFRICANO?



E SE OBAMA FOSSE AFRICANO?
Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África. Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz.
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Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos. Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo. Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto. E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
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1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
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2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
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3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
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4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
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5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
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6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores. Inconclusivas conclusões Fique claro: existem excepções neste quadro generalista.
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Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte. Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos. A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa. Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes.
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Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público. No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo. Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

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Mia Couto é escritor moçambicano. Recebi o texto do Paulo José. Ilustração de Netto de Deus.

Eça de Queiroz




«Os políticos e as fraldas
devem ser mudados frequentemente
e pela mesma razão.»


(garimpado por Sacha)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Obama nas Alturas



O Piauinauta foi pra longe da terra. Pra observar que o planeta conseguiu ter um negro, das origens africanas, quenianas pras dúvidas, no comando do Império. O astronauta não espera um novo Moisés na terra prometida aos ricos. Mas a fé depositada não se falta, sob a pena do pecado. Ou esse cara melhora o planeta, ou a coisa fica preta. E tem jeito?
ps: a edição de hoje saiu um dia antes por puro vexame...

BAR DO GREGÓRIO

Edmar Oliveira

Bem ali em frente ao monumento que a prefeitura ergueu em homenagem ao Gregório. Bem em frente a esta tragédia da morte do motorista Gregório, que Geraldo Borges arruma maravilhosamente aqui na edição anterior do Piauinauta, ficava o Bar do Gregório. Preste atenção, Neto de Deus, você que tão bem advogou a causa do Parabelum na mão! No bar, mistérios não tinham. Cachaça, conversa, paca, tatu, cotia não. Isso era Gregório. O cabra montou um bar pra faturar os devotos ou as almas do Gregório. Fui um deles. À procura de bar na madrugada me dei por fim no Gregório. Bom de papo, mesa de sinuca, cerveja estupidamente gelada, que em Teresina sai do saco de farinha: empoada! Se assim não for gelada, não se bebe. E paca, tatu, toda sorte de caça e conversa lá tinha. Uns amigos meus até fizeram músicas em bar pro Gregório. Pegou fama. Toda vez que ia a terra minha, me fazia em mesa de conversa no Gregório. E nas iguarias da terra, que isso era antes de se ter que ser politicamente correto. Era que na minha infância, capivara nadava no rio, paca corria na mata, tutu tirava-se do buraco. Claro que sei, não venham me dizer, que contribuí pra extinção das espécies, que o planeta ficou pequeno. Mas eu é que não sou culpado de tudo. Nem o Gregório. Pois é, o dono do bar, converseiro que só, aceitava ser chamado de Gregório, capitalizando o monumento e os milagres, ali em frente.


Um belo dia, volto em férias na terra e me dirijo ao Gregório. O bar de frente ao monumento. Tava caidaço! Quase ninguém, uma tristeza pelas pontas. Waldick cantando lá na vitrola. Quis a mesma alegria de outrora. A cerveja, a conversa e a comida. Aí morava a confusão. A cerveja tava gelada, a conversa tava morna, a comida não tinha. Gregório me fala que seu negócio chegara ao fim. Uns fiscais do IBAMA lhe multaram e proibiram as caças das melhores comidas que provei. Também fiquei triste, mas entendia a preservação e a razão de ser daquelas ações. Tentei consolar Gregório. Em vão. A revolta era grande. Me contou porquê. Os fiscais chegaram e pediram um tatu. Saborearam e tomaram cerveja. Só depois se identificaram e aplicaram a multa e prenderam o Gregório. A revolta do Gregório é que metade da prova tava na barriga dos fiscais. Desejei que um verdadeiro milagre do motorista Gregório fizesse aqueles fiscais cagarem água. A cacaneira é a única vingança que se deseja aos falsos de coração...

MEU TEMPO DE PELADA

Geraldo Borges


Quando cheguei em Teresina para estudar, descobri a alegria do futebol. Nós, os colegas da mesma rua, principalmente, nos reuníamos toda vez que havia oportunidade para bater uma pelada. Éramos estrompas. Uma vez por outra um saía machucado, mas valia a pena, suar e correr. No começo era com bola de meia, que a gente mesmo costurava. Não tínhamos recurso para jogar com bola de couro.



Depois conseguimos uma bola de borracha. Tivemos que nos adaptar aos seus efeitos, porque era muito leve, rápida em seus movimentos .Qualquer chute com muita força extrapolava o limite do campo e ia cair muito longe. Com o tempo fizemos uma vaquinha, e pingando um tostão aqui, outro ali, compramos uma bola de couro, que a gente enchia com bomba de bicicleta; era bastante pesada. Tivemos de nos adaptar a um novo ritmo. O contentamento foi geral.
Jogávamos descalços. Muitos dos colegas tinham apelidos. O meu era Peruzinho. Tinha o Pé de Gato, o Negrinho da Becetinha, o Dom Ratinho, o Raspadeira. Jogávamos em muitos locais. No inicio o nosso campo era na Rua Campo Sales, que ainda estava longe de ser asfaltada, e muito menos de virar avenida.



Jogávamos na rua Palmeirinha, perto do corte da linha férrea, onde hoje passa a Miguel Rosa. Na esquina morava o velho professor Chico César, professor de latim, que implicava com a gente. Pois a bola batia muito na cerca do quintal de sua casa. Chico César era um tipo singular. Fizesse frio ou calor, estava sempre envergando seu paletó xadrez, barba cerrada, charuto aceso na boca, bengala na mão. Exortava-nos, e nos mandava estudar. Para deixá-lo em paz, uma vez por outra, passávamos a jogar na Esplanada, que ficava no fundo da estação ferroviária, no caminho que vai para o rio Poti.



Lá o chão era duro. E como jogávamos descalço machucávamos bastante os pés. Terminada a partida íamos tomar banho, no porto do Meduna, perto da horta da colônia japonesa, que o doutor Clidenor tinha trazido para o Piauí a fim de melhorar a nossa lavoura.
Jogávamos também na praça do Marquês, que nesse tempo era apenas um campo de futebol; outro lugar que costumávamos jogar era na Fiação. Lá havia um campo muito bom.



Aos pouco nosso time foi melhorando. Arranjamos no comércio, como cortesia, um uniforme, de camisas quadriculadas. Só não arranjamos chuteiras. Mas cada um comprou um par de tênis. Tínhamos um craque em nosso equipe, o jovem Wallace, filho do tenente Edmundo, só o seu nome já nos impressionava. Mais tarde jogou pelo Flamengo. Tinha um célebre chute folha seca.
Uma vez fomos jogar na Ilhota. Local próximo ao rio Poti, onde meninos pobres, sem família, eram internados para se educar. Ali aprendiam artes e ofícios. Viviam num regime de muita disciplina. Sabiam jogar futebol muito bem. Perdemos o jogo.



Com o passar do tempo a nossa equipe foi ficando desfalcada. Wallace foi embora para Fortaleza. Não demorou muito alguns colegas tiveram de se mudar para longe. Quando menos esperávamos a nossa equipe ficou desfeita. Os poucos que restaram, agora, se divertiam jogando partida de time de botão. O meu time era o Fluminense. Ainda hoje me lembro de sua escalação; a defesa era: Castilho, Pindaro e Pinheiro. Tinha também: Orlando, Didi, Bigode.



Passado a adolescência, chegou meu tempo de servir a exército. Na caserna voltei a jogar bola. Participei da equipe do meu regimento. Lembro-me de uma partida que travamos com os soldados recrutas na cidade de Itaueira. Eles estavam nos esperando, descansados. Vínhamos de Vereda Grande. Chegamos meio dia, com fome. Nem ao menos descansamos. Fomos jogando no campo para disputar a partida. O pior jogamos descalço. Pobre exército brasileiro. Nem chuteira eles nos deram na hora. Nunca me esqueci desse jogo. Saímos do campo com os pés queimados, cheios de bolhas, e derrotados. Não conseguimos fazer sequer um gol. Logo que dei baixa do exército o futebol para mim ficou descartado. Eu preferi cuidar da minha cabeça, já que eu era perna de pau.

Carta a D.

Luíz Horácio

“Se eu morrer agora, você retornará ao Rio de Janeiro?” Mal tínhamos acordado e minha mulher, após um beijo, traz à tona essa questão. Como se trata de uma quase filósofa e a morte é a grande inspiradora da filosofia a princípio tomei aquela indagação como provocação, ela sabe o estrago que me faz falar e pensar na morte, e também uma tentativa de filosofar. A questão precisava ser quase simplória devido às limitações do seu patético interlocutor. Fosse o que fosse, não teve êxito. O medo que o tema me causa, o medo da morte é inato, empurrou minhas mãos trêmulas ao controle remoto e logo liguei a TV em busca de uma bobagem qualquer.

Ela não insistiu e eu num silêncio/trincheira inventado naquele instante lembrava do melancólico livro Carta a D., que tínhamos lido e debatido semanas antes, sob coincidentes emoções.

A morte não combina com nada, e quando confrontada com o amor a incompatibilidade se torna insuperável, por ter experimentado de ambos meus medos se redobravam, Depois da pergunta de minha mulher me perseguiu por horas e horas uma frase de Carta a D.“Nós desejaríamos não sobreviver um a morte do outro.”

Impactado com a frase conclui que deve ser essa a única maneira de um amor durar para sempre. Amor ou vontade de vida, conforme Schopenhauer.

Mas “como construir esse para sempre?” Partindo da certeza do meu amor por minha mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, se tornava óbvio objetivar a continuidade do prazer.Sei que no frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja para sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Esse mundo não me interessa,o mundo da razão, razão que nos presenteou com a certeza da morte, me desagrada completamente. Por outro lado, me fascina o mundo da minha imaginação. Sua existência depende de mim, se tenho os planos é por que a construção é viável. Meu objetivo é trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu quero bem, que na verdade guardam pedaços meus e caso morram, eu também morro. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser para sempre. E só pode ser pra sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o para sempre é algo que não surge livre da dor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e se não amamos não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia... O dia em que percebemos que podemos permanecer assim para sempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do para sempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exigia movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto.

Porém, em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Naquele instante eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente por que ela não está comigo. E como sofro!!!! Infelizmente o amor nunca é para sempre, visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Não eu não invejo o amor de Dorine e André, mesmo que o amor deles tenha durado para sempre. Agora eu tenho a receita e posso responder a minha mulher: “Não, quando você morrer não voltarei ao Rio de Janeiro.Não irei a lugar algum. Pregarei na porta de nossa casa placa igual a de Gorz; Avisem a polícia” É isso. Não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Mas acreditar não basta é preciso viver a realidade com fantasia.

Amor ou vontade de vida. Em setembro de 2007 Dorine e Gorz suicidaram-se, cada um com sua respectiva injeção letal, a doença dela (aracnoidite) atrapalhava a vontade de vida do casal. Viveram juntos quase sessenta anos. Dorine sofria há vários anos de uma doença incurável, fruto de um erro médico - “você vai eliminar esse produto em dez dias” , anunciou o radiologista.Enganava-se, o líquido(lipiodol), utilizado para fazer contraste numa radiografia de coluna, alcançou o cérebro , Dorine sofria dores terríveis.
Carta a D., escrito entre março e junho de 2006 com Dorine já doente, é uma carta de amor, é uma história de amor, é uma história sobre os sobre-saltos do viver? É uma história sobre a literatura, sobre o silêncio? É tudo isso e mais: é também o mea-culpa, pedido de perdão, remorso de Gorz . Logo na abertura ele confessa: “Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traîte, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver. Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes?

Em Le Traîte chega ao requinte de chamá-la de “coitadinha.“Tem mais; Carta a D. também é o relato de uma tragédia provocada por um erro médico, enquanto isso a vida segue abusando das repetições, André e Dorine não suportaram, não importa se para os gatos ou para os médicos, ambos escondendo suas cagadas embaixo da terra. Falo com conhecimento de causa, já me pegaram duas vezes, fizeram uma vítima fatal. Carta a D. é uma pergunta; a pergunta que incomodava Gorz: “por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa e excluímos as demais?” A pergunta continua a espera da resposta.
Gorz entendia que a filosofia não servia para explicar o amor. Abrir parênteses: quem leu Metafísica do Amor, de Schopenhauer, sabe que Gorz está com a razão. Fechar parênteses. O amor é o deslumbramento de uma pessoa pela outra, pelo que elas vêem e sentem de mais inexplicável.Amor implica em união, Dorine dizia: “Nós seremos o que fizermos juntos.”

Gorz precisava de Dorine, me atenho a ele porque a carta é escrita por ele, deduzo que a recíproca tenha sido verdadeira. Dorine duvidava da aplicabilidade das teorias de Gorz, mas não negava-lhe o apoio fundamental. “Amar um escritor é amar que ele escreva , dizia você. “Então escreva!.” Gorz rebate: “Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais existir.” Não, sensível leitor, não se trata de auto-ajuda, é triste, é demasiado humano, pena que o humano ande tão fora de moda e o amor atualmente seja tratado como animal em extinção. Eu disse amor, note bem. Não confundir com atração física tão somente ou certos jogos de interesses que todos conhecemos muito bem e não saem da ordem do dia.
O autor André Gorz, filósofo e jornalista(Les Temps Modernes e Le Nouvel Observateur) sofreu influência de Karl Marx e Jean Paul Sartre. O leitor atento pode confirmar com a leitura de “Estratégia Operária e Neocapitalismo”, “O Socialismo Dificil”, “Critica da Divisão do Trabalho” e “Adeus ao Proletariado”. Filósofo importante, fez da ecologia um dos seus temas favoritos junto com o anticapitalismo que em dados momentos nos faz lembrar Theodor W. Adorno em suas criticas radicais à cultura atual onde o humano é preterido em nome de uma neo barbárie. Dorine,inglesa, nascida Doreen Leir era uma atriz de teatro. Se encontraram na Suiça, dois anos depois estavam morando juntos.

Dorine e André inventaram um amor e um mundo ; o amor ainda hoje mantém contato com a realidade atual; o mundo de combate a doença no entanto e de alerta aos inevitáveis erros médicos não pode ser esquecido. Dorine e André já estavam mortos antes de suicidarem-se, o ato físico foi tão somente o ápice de uma morte espiritual que se deu com o avanço da doença de Dorine. André, porém, se manteve vigilante: “Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda a sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.”
Em Carta a D. André Gorz combina amor e sofrimento na medida exata, embora intensos, no entanto este resenhista ranheta não faz pouco caso das intenções do autor, discorda apenas do momento escolhido para tão significativa declaração. Bem, mas o suicídio dele foi a grande declaração de amor, você deve estar pensando, amoroso leitor. Para não me tornar ainda mais chato prefiro encarar Carta a D. como a última declaração de amor, nesse caso presumo a existência de inúmeras outras,próprias dos grandes amores.
Gorz contraria Adorno, em Carta a D. o autor não desaparece na obra.



O AUTOR
André Gorz (Viena,1923 - Vosnon,2007), pseudônimo de Gerhard Horst, é autor de uma das reflexões mais importantes sobre o capitalismo e o mundo do trabalho no século XX. Com livros publicados em diversos países, foi um pioneiro na defesa da militância ecológica como uma política, tanto em sua obra teórica como eu seu trabalho na imprensa. Dedicou os últimos anos de vida a cuidar da doença da mulher, Dorine, período em que publicou uma série de ensaios de grande relevância, a começar por Adeus proletariado (1980) que marca o rompimento com o marxismo.



TRECHO

Vinte e três anos se passaram desde que fomos viver no campo. A princípio na “sua” casa, que liberava uma energia meditativa.Nós a saboreamos por apenas três anos. O canteiro de obras de uma central nuclear nos enxotou dela. Encontramos outra casa, bastante antiga, fresca no verão, quente no inverno, com um terreno enorme. Você poderia ter sido feliz ali, onde não havia nada além de uma campina, que você transformou num jardim de sebes e arbustos. Plantei duzentas árvores. Durante alguns anos, ainda viajamos um pouco, mas as vibrações e os solavancos dos meios de transporte, fossem quais fossem, causavam-lhe dores de cabeça e em todo o corpo. A aracnoidite a obrigou a abandonar, pouco a pouco, a maioria das suas atividades favoritas. Você consegue esconder os sofrimentos; nossos amigos sempre a acham “em plena forma”. Você não parou de me encorajar a escrever. Ao longo dos vinte e três anos passados na nossa casa, publiquei seis livros e centenas de artigos e entrevistas.Nós recebemos dezenas de visitantes vindos de todos os continentes, fui entrevistado dezenas de vezes. Eu certamente não estive à altura da resolução que tinha tomado havia trinta anos: a de viver o presente, atento mais que tudo à riqueza que é a nossa vida comum. Agora eu vivo de novo, e com um sentimento de urgência, os instantes em que tomei essa resolução. Não tenho nenhuma obra mais importante em elaboração. Não quero mais - segundo a fórmula de Georges Bataille - “deixar a existência para mais tarde”. Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.


Luíz Horácio
Jornalista,escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, ed. Conex e Nenhum pássaro no céu-ed. Fábrica de Leitura, Professor de Literatura, coordenador do curso de pós-graduação latu-sensu Literatura-produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato-FATO-Porto Alegre


assim recebi esta beleza de resenha:


Caro Edmar.


Colaboro com o jornal O Globo, Rascunho, revista Aplauso, de Porto Alegre. A resenha que envio sairá no jornal Rascunho, Caso sirva ao Piauinauta, ela é sua.
Abraço

Luíz HorácioPorto Alegre-RS



Caro Luíz Horácio,
É um prazer contrar com sua colaboração. Um dia nos conheceremos. Mande mais destas pérolas, abs. Edmar
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Sobre a foto:
Eram assim há 60 anos... Ontem (hoje?), mataram-se: André Gorz e D. Amores como este, que viajam além da própria morte, até nos fazem acreditar no amor, queria dizer, numa certa poesia da incandescência...«Tu vas avoir quatre-vingt-deux ans. Tu as rapetissé de six centimètres, tu ne pèses que quarante-cinq kilos et tu es toujours belle, gracieuse et désirable. Cela fait cinquante-huit ans que nous vivons ensemble et je t'aime plus que jamais. Je porte de nouveau au creux de ma poitrine un vide dévorant que seule comble la chaleur de ton corps contre le mien.» (endereço da foto: abnoxio)

OLGA

Olga, o filme


Ana Cecília Salis

Um dos poucos filmes que
me fez chorar
inclusive no dia seguinte
Camila Morgado fez de Olga
Uma mulher que morre
Com o corpo nu
e a alma calçada de butinas

Uma mulher que morre
com um último olhar
Profundo azul
Cenário do orgulho
de um dever cumprido
e do desamparo,
das dores de fêmea
que conhece o parto
que ama um homem

que deixa para frente
uma história
para contar
sobre mais que um ideal,
sobre que há de plural
em um corpo esquálido
de mulher
que não transige,
que luta,
até o último minuto
pela dignidade
de ser
simplesmente humana...

Parabéns Camila
Parabéns Jayme
Obrigada, Olga...



Ao reler o que escrevi sobre o filme “OLGA”, fui levada a refletir sobre o que haveria de semelhança e diferença entre a arte da interpretação no cinema e na clínica psicanalítica. Chamou-me atenção o fato de ter encontrado e me referido a Olga através de Camila Morgado, ou através da interpretação, em ato, de Camila sobre o sujeito Olga.
Um ator quando entra em cena, tem que despir-se de si para se deixar tomar por um personagem e fazer valer sua interpretação. Tanto mais afastado de sua história pessoal, de suas idiossincrasias, mais apto estará a incorporar e transmitir veracidade ao seu personagem. E será nesta exata medida que nós expectadores teremos a oportunidade de nos emocionar, refletir e até mesmo nos identificar a estes personagens. E não seria de todo equivocado pensarmos que estes momentos, muitas vezes mágicos, muitas vezes trágicos, sejam capazes de promover mínimas retificações na maneira de conduzirmos nossas vidas...
E um analista? Tal como um bom ator, este também deverá entrar e participar da “cena” analítica, despido de si, de seus ideais, para emprestar-se às projeções dos personagens que compõe a(s) cena(s) contada(s) pelos sujeitos que o procuram. Em análise, estas cenas e personagens quando entregues à decifração, poderão, graças à boa interpretação de um analista, vir a redimensionar a vida de um sujeito. E assim, mais uma vez, em momentos por vezes mágicos, por vezes trágicos, poderemos em análise, nos emocionar, refletir e promover importantes mudanças em nossas vidas.
É curioso imaginar que nada sabemos sobre o sujeito “ator”, embora em sua arte ele nos traga a intimidade de seus personagens plurais. Da mesma maneira, é possível percebermos a importância de estarmos distanciados do “sujeito” analista para que possamos entregar-lhe nossa intimidade e nossos personagens. Será por este viés que um analista, em sua “arte”, irá interpretar-nos para, enfim, nos entregar ao que há de mais absolutamente singular em nós.
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Publiquei Ana Cecília aqui, doutra vez, pelo caráter do blog, dinossauros do século passado entendendo a pós moderna idade. O texto fez tanto sucesso que foi o mais comentado do blog. Publico de novo, e aí a boa poeta, pra ver se estes psicanalistas estão de análises com o Piauinauta. Sem problemas, moços freudianos. Mas a moça é boa de opinião. E quando se é, dane-se o viés... Mande mais textos, o espaço tá garantido. (Edmar)

LUZ-IZA




LUIZA BALDAN

Fujam do rótulo "Economico"

Cinéas Santos



No ano passado, o prof. Miguel Srouge, um dos mais renomados urologistas do país, compareceu ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, para uma daquelas sabatinas que se realizam às segundas-feiras. As perguntas, como era de se esperar, foram centradas na próstata, o pequeno novelo de encrencas com o qual a Natureza brindou os homens para, ora alguém lhes cobrar uma pensão alimentar, ora aninhar um câncer que os levará ao cemitério. Próstata é sinônimo de problema. Lá pelas tantas, Dráuzio Varela, um dos entrevistadores, certeiro como um tiro de lazarina, fez um comentário cáustico e preciso: “A próstata é a melhor prova de que a Natureza não programou o homem para viver mais de meio século. A partir dos 50 anos de idade, ela começa a crescer, comprime a uretra e pode evoluir para um câncer fatal”. Não era a voz de um palpiteiro; era uma sentença irrecorrível. No final do programa, um consenso entre os sábios: todos concordaram que, a despeito dos progressos da medicina, o único exame “confiável” continua sendo o do “toque”, eufemismo que não suaviza nem o desconforto nem o constrangimento do “tocado”.


Ao adentrar o portal dos sessenta anos, tornei-me, compulsoriamente, membro do clube do toque, título que não me envaidece. São as despesas do envelhecer. Deixemos, porém, de literatice e vamos aos fatos. Na semana passada, liguei para o consultório de um urologista a fim de marcar um exame de rotina. A secretária, com aquela impessoalidade de quem trata seres humanos como simples cifras, fez a pergunta padrão: - Qual é o seu convênio? Ao ouvir a resposta, adiantou: - Só no final do mês. Recorri ao expediente que não nunca falha: - E particular? Com voz menos metálica, respondeu: - Podemos marcar para depois de amanhã. Gato escaldado, perguntei: - Quanto custa a consulta? Em vez de uma resposta, outra pergunta: - A normal ou a econômica? Tremi nos tamancos: aquilo seria um consultório médico ou um bazar turco? Apavorado, esqueci a pergunta e lembrei-me das duas vezes na vida em que optei pela classe econômica e, literalmente, me ferrei. A primeira, no Recife. Certa feita, hospedei-me num “hotel econômico” na Praia da Boa Viagem. Além de ter de carregar a bagagem, serviram-me um café da manhã indigesto. Tive uma reira de afinar as tripas. Como no hotel não havia água no banheiro, deixei uma obra (naquela acepção sertaneja do termo) monumental de lembrança. A segunda: um vôo num daqueles paus-de-arara da BRA, de triste memória. Saí de Porto Alegre no início de tarde e, depois de “passear” por Curitiba, São Paulo, Brasília, Goiânia, Belém e São Luís, cheguei a Teresina na madrugada do dia seguinte, estropiado e faminto. Nesse périplo, serviram-me apenas duas barrinhas de cereal e dois copos de guaraná choco. Pensei comigo: exame de próstata na “classe econômica” deve ser dose pra levantar defunto...


Esse incidente serviu para reforçar-me a convicção de que, num mundo de economia globalizada, já não existem as figuras do indivíduo, da pessoa, do cidadão. Existem apenas os consumidores e os não-consumidores. Para não me afastar do universo proctológico, aos primeiros, vaselina importada; aos segundos, areia grossa. São as leis do mercado. As inexoráveis leis do mercado...

OLHE ONDE PISA

Climério Ferreira


Pise devagarinho
Espalhei sonhos no caminho


A CASA

Leonilde Freitas

Da porta principal à derradeira,
um corredor. Só o piso de madeira.

As portas laterais, trancadas.
Todas elas.

Pelas janelas,
fogem os fantasmas gerados na cumeeira.

Que mais?
Que mais?

Ah, sim: uma goteira, sangrando...sangrando...
sujando a casa inteira.




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Recebido de Cineas naquela corrente poética maravilhosa, que ele faz toda segunda feira:

"Irmãos e irmãzinhas: a semana se inicia sob o signo da incerteza, mas, independentemente do que rolar, sobrará alguma poesia para ser lido sobre os escombros. Leiamos, então, A CASA, belo poema de Leonilde Freitas. Espaço Neutro – Editora Liberdade "

(Cinéas Santos)

Vilhena again

Meu velho e bom Edmar,
Você acreditava que eu lhe deixaria em paz?

A culpa toda é do Durvalino: foi ele que me falou sobre o seu sáite. Ou blógui. Não sei como se escreve essas coisas: limito-me a sentir saudades. Até do que virá. Saudades de que saudades sentirei. Semana passada percorri a rua Campos Sales. Achei pouco e estuprei minhas próprias saudades dissecando a rua da glória Lisandro Nogueira. Você não imagina, velho, o que é morrer sem testemunhas do tempo. Não imagina o que é tomar uma cerveja no bar redondo (aquele, na praça do Liceu) como fiz anteontem, e depois descobrir que morreu e Deus, na sua infinita bondade, negociou com todos os arcanjos e conseguiu rasgar meu passaporte para o inferno.

As ruas arruinadas estão aqui na nossa Teresina, e é com elas que eu brinco aos domingos e feriados. Ultimamente tenho assistido às missas das onze e trinta na igreja do Amparo. Tenho ido muito, também, ao mercado velho, e estou até criando um galo de campina. Estou ficando velho novamente, Edmar.

Ajude-me. Receba meu abraço e dê notícias.

Paulo Vilhena
_________________

Esse recado do Vilhena é demais prum blogueiro velho. Emociona. Paulo é jornalista, professor da Universidade Federal do Piauí. Só quem não é da terra acha que é pouca merda! Um montão. E da boa. O cara é mestre e na sua tese sou, com outros velhos meninos da época, sua tese de mestrado. O Piauinauta tá na Amparo, assistindo missa com o Paulo.(Edmar)

Rio Poty




Geraldo Borges


O rio Parnaíba velho monge
E o Poty ninguém vai comemorar
Só o Parnaíba alonga ao longe
O rio Poty também tem seu lugar.

Lendas e mitos o rio Poty possui
É uma artéria no coração da cidade
Mesmo maltratado o rio ainda flui
O sol põe em suas águas alacridade.

No encontro das águas o rio cresce
E abraça o Parnaíba no Poty Velho
É belo este afluente ao entardecer.

O Cabeça de Cuia a noite reaparece
E a menina que não ouve conselho
Pode no último mergulho se perder.

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Foto: Edmar no celular encontrando as águas com o Cabeça de Cuia.

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Diatribes de TOM ZÉ na terra dos araçás




Everi Carrara

Ainda na segunda-feira, recebi email de Tânia (um dos braços de apoio de Tom Zé) me informando que o mestre de Irará, iria tocar em Araçatuba,no dia 30 de outubro (quinta-feira) com banda, e apresentação preliminar de artistas de teatro e poetas como Chacal, Fausto Fawcett,e Kadão Volpato. Coloquei a agenda de shows do TOM ZÉ em meu blog,como de costume,avisei amigos da cidade e de outras regiões e capitais. As pessoas se aglomeravam para ver e ouvir o grande ícone da tropicália. Cheguei e fui conversar com Tom Zé e a sempre simpática Dona Neusa (esposa de Tom Zé), e braço fundamental para saber algo sobre ele e sobre o andamento dos shows.


Tom Zé está acompanhado por uma banda muito eficiente, e bem ensaiada) abrindo o espetáculo com "2001" (tom ze/rita lee), um clássico do pop que marcou também a carreira dos MUTANTES,no final dos anos 60. Tom Zé brinca, fala com a platéia, domina o palco, tudo que o envolve,porque seu trabalho além da qualidade musical que o glorifica, parece também ser um performer,um ator. E olhem,que ele já é um mocinho com muitos anos de carreira musical nas costas,trabalhando como uma formiguinha, sem cessar. Apresentou músicas do ESTUDANDO O PAGODE (pra mim, esse disco é um dos mais importantes da história da música,brasileira e mundial), e antigos clássicos do genial disco TODOS OS OLHOS, como é o caso de "Augusta,Angélica e Consolação".


Meus amigos estavam lá:fernando dagolds e tereza, herialdo dantas,carlinhos e tamires,igor (Caasp),o poeta Edson (áfrica), marcelino duarte, julio carlos, giovane, Liliam, Laís,e dezenas de outros. Queriam ver TOM ZÉ, uma dádiva para a cidade num momento tão crítico, tão carente de arte e brilho. TOM ZÉ é também um brilho de diamante na escuridão dos caminhos desse país gigante e adormecido. Quando ele canta o pop COMPANHEIRO BUSH, investe divinamente na sátira sobre os perigos de um possivel bombardeamento ianque em várias partes do planeta,inclusive em Araçatuba .TOM ZÉ é plural, sempre musicalmente próximo das antigas lavadeiras de Irará, preciso como um golpe, sereno como um movimento do tai chi.


Aliás, disse para dona NEUSA que o tai chi chuan talvez tenha ajudado muito TOM ZÉ a superar os desgastes dos shows e da correria toda desses tempos. Ela me presenteou com o maravilhoso cd DANÇ-ÊH- SÁ, sete cayminianos para o fim da canção. Um cd que ouço nesse instante, sem o uso das palavras TOM ZÉ é todo rítmo,sons e diatribes tomzenianas. Somente um gênio como ele, Arnaldo Baptista ou Hermeto, possuem a ousadia e a luz para iluminar e dinamitar esse século. Voltamos todos enfeitiçados e felizes para nossas casas. TOM ZÉ, rosto suado, sempre valente, tocava o coração de todos como se fosse a primeira vez.
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O Piauinauta de Araçatuba mandou esta.

EVERI RUDINEI CARRARA: músico ,editor,consul dos poetas del mundo em Araçatuba/sp: fone 36212627/ 3625 7657
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E Tom Zé respondeu:

Everi, meu caro, agradeço você ter ido ao show, e seus comentários que li hoje..Novamente, fico-lhe muito grato pela atenção, peço que estenda o agradecimento a seus amigos.Tenha um ótimo fim-de-semana, obrigado,Tom Zé,1 de novembro de 2008

MEMÓRIA CURTA OU SEGUNDAS INTENÇÕES





Edmar Oliveira

Absurdamente extemporânea a declaração do excelentíssimo doutor juiz presidente do Supremo Tribunal Federal. Desde que se apossou da pompa do cargo, sua excelência vem se destacando por opiniões polêmicas. A um juiz, e em tamanho cargo, melhor o silêncio para uma suprema decisão. O doutor Gilmar tem dito que se houver qualquer julgamento para torturadores deverá haver condenação dos atos terroristas. E tamanha frase de efeito tem ouriçado muitas opiniões de quem tem memória curta ou é bastante possuidor de segundas intenções.



A anistia, senhores, palavra que não foi usada pelos argentinos para perdoar os generais hermanos, é uma invenção com o nosso jeitinho brasileiro de ser. Acontece que nossa democracia, apesar de conquistada às duras penas, pareceu ter sido doada na distensão lenta e gradual do General Ernesto Geisel, que pediu que esperássemos o Figueiredo (alguém aí se lembra?). E se os militares estavam se retirando porque queriam, nós devíamos negociar esta saída. Muito culpa do Tancredo que conteve a comoção das diretas já. Se temos que voltar assim à democracia, quase que por graça e bondade dos militares, anistiemos os lados da guerra da luta dos iguais.



Que iguais, cara pálida? O massacre de uma ditadura militar sangrenta, com todo poderio de fogo do seu lado, amordaçando as liberdades democráticas e prendendo e arrebentando quem se opusesse a ela, era uma luta de lados opostos em igualdade de condições? Tivemos que aceitar a anistia deles para que os nossos pudessem voltar de um banimento cruel, para que pudéssemos expressar nossas idéias sem medo da prisão e da tortura, para que pudéssemos respirar. Que diabos de democracia era aquela farsa inicial?



Democracia é só agora, quando podemos exigir que, mesmo com um atraso atroz, os torturadores sejam, pelo menos, reconhecidos como tais, como aconteceu com o General Brilhante Ustra. E mais, na democracia plena podemos exigir a punição de quem, em nome do Estado, torturou e matou nos porões da ditadura. Os terroristas, que o supremo guardião da justiça quer agora punir também, para equiparar aos torturadores, já foram mortos, torturados e banidos do convívio com sua pátria e os seus parentes e amigos. Querem julgá-los por um crime que já foi pago com juros e correções monetárias?



Todos agora podemos até concordar que os atos terroristas foram equivocados e que vitimaram inocentes. Mas no calor daquela luta, quem lembra sabe, não se tinha muita alternativa para resistir ao monstro fascista do Estado devorador. Podem ter errado, o que até nem acho, mas já pagaram. A tortura, no mínimo a psicológica – que também fere e dói demais – e a dor cruel imposta pela limitação física de não pertencer a um Estado que foi tomado por usurpadores das instituições, já não foi castigo bastante? E os torturadores sofreram o quê? Só se for dor de consciência, para quem tem essa dor. Os demais fazem coro com os indignados de agora. Meninos que acham que os terroristas devem ser punidos de novo: a vossa falta de memória é a segunda intenção dos torturadores. E, meritíssimo, antes de julgar não emita opinião, que não é permitido a um juiz. Escute os argumentos para fazer a justiça...

Soberana



Keula Araújo


Eu sentia que o olho que pairava sobre mim não era protetor nem amável. Era olho seco, olho sem promessa, olho de apenas estar... Quem sabe o que ocorre dentro de um olho assim?
“- Eu quero estar presa ao seu coração, não à sua consciência”.
Disse e saí. O meu olho cintilava de dor. Perscrutava o jardim em busca de meus beija-flores. Mas era noite: em mim e em tudo ao redor.
Foi quando se deu: a palmeira rija e imponente curvou-se quando passei, quando todas as luzes apagaram-se diante de mim e só brilhavam meus olhos. Era dor. Soberana a minha dor: sobre a natureza, sobre as construções, as pedras. Tudo fremia no latejo de meu coração e por ali parei: incapaz de cruzar o caminho.