quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008


O Piauinauta em dois momentos: no céu do Rio de Janeiro, num amanhecer esplendoroso, e na boca na noite numa procissão em Oeiras. Sobrevoando as emoções de uma natureza redentora e no calor das velas de um povo em festa, onde o jeculatório reza a desobriga do sofrimento. Salve Oeiras, onde os pés do Cristo marcaram o leito seco do rio da primeira capital do Piauí.

A Proteção do Mosquito

Edmar Oliveira


Está muito próximo o dia em que cada pessoa que mora no Rio de Janeiro terá uma história de violência para contar. E pior, uma história em que foi vítima da violência que se instalou na cidade, ao que parece definitivamente, num processo crescente. Isto quem tiver a sorte de escapar para conduzir a narrativa. Na forma em que acontecem, estas histórias já podem ser classificadas, pelo menos em dois tipos, conforme o agente: violências cometidas pelos fora-da-lei e violências praticadas por agentes da lei. Quanto menor o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de uma comunidade, mais as de segundo tipo são comuns. Mas isto já vem mudando de forma mais democrática.

Não sei se os métodos fora-da-lei cometidos pelos agentes da lei são iguais aos métodos do crime agenciados pelos fora-da-lei. Mas a semelhança vem se instituindo de forma crescente e invadindo os espaços antes protegidos. A diferença só pode ser observada quando examinamos “caso a caso”. Um amigo meu já chama os crimes de segundo tipo de “Síndrome do Capitão Nascimento”, numa referência ao filme “Tropa de Elite”, cujos métodos cruentos que pretendeu denunciar foram incentivados por platéias ávidas por vingança, que nada tem a ver com justiça.

Uma onda de artigos e reportagens recentes traz a narrativa de casos de crimes cometidos por agentes da lei. Casos acontecidos com cidadãos acima de qualquer suspeita e com acesso à mídia. Os que acontecem com os mortais e com o cidadão de segunda categoria das comunidades carentes nem chegam mais a incomodar os jornais. Notícia não é o que acontece de forma comum e repetitiva...

Na segunda-feira do último carnaval, um juiz federal foi preso, algemado, levado à delegacia após ações “corretivas”, físicas e verbais, apesar de ter se identificado, apenas porque estava fantasiado de “malandro” na Lapa, segundo a interpretação da autoridade policial. Para o sargento, aquele chapéu, que imitava palhinha, não deixava dúvidas. O caso foi destaque no noticiário, artigo em jornal e repercussão proporcional à importância da vítima, mas aconteceu e podia ter sido trágico. Um jornalista escreveu um artigo denunciando a proposta de propina feita pelo policial, após um acidente de carro em que foi vítima. O trauma foi tão grande que o missivista declara não dirigir nunca mais. Um chef de restaurante foi agredido por ter fotografado no celular uma agressão gratuita a um casal em plena praia da zona sul. O policial alegou desacato à recusa da entrega do celular com a foto. Imaginemos os crimes que não foram relatados...

Os crimes dos dois tipos, conforme o agente, estão tão semelhantes que me lembram um caso verídico, no qual os papéis ficaram confusos e um mesmo agente encenou os dois papéis. Aconteceu com uma amiga: preferiu ir de metrô, numa manhã de domingo, a um encontro do Conselho Estadual de Saúde que acontecia no Maracanãzinho. Quando atravessava a passarela deserta, que liga a estação do metrô ao Maracanã, percebeu a burrada que cometia. Procurou em volta um assaltante, que não demorou a aparecer, aumentando o seu pânico. Ficou nervosa, deixou cair o celular que perdeu no assalto, além de todo dinheiro em espécie. Ao mesmo tempo em que era roubada, tentava acalmar o bandido dizendo que estava nervosa e por isso o celular caíra e custava encontrar o dinheiro na bolsa. Mas, por fim, assalto consumado, ficou com a bolsa vazia de objetos de valor, foi se dando conta da solidão e de novo perigo. Chama o ladrão de volta e argumenta que ele lhe tirara tudo, que ela ainda tinha um grande percurso a fazer sozinha e que outro ladrão poderia aparecer... Sabe como é, você pode ser agredido só por não ter o dinheiro reservado ao assalto. Enfim, estava pedindo socorro ao bandido, que já tinha feito seu “trabalho”, e aí o inusitado acontece: o ladrão a acompanha, dando proteção policial, até próximo a entrada do Maracanãzinho. Perdeu duzentas pratas e o celular, mas ganhou esta boa história pra contar. E aposto que o ladrão conta este assalto aos colegas, rindo daquela mulher louca. Mas ele fez a proteção policial que faltou.

Nesta confusão de polícia e bandido lembro de outra notícia da minha preferida página de “ciência” das abobrinhas: um cientista descobre que o vírus da dengue não deixa o mosquito se infectar com o vírus da febre amarela. Eles concorrem para ocupar o mosquito. Desta forma a dengue nos protege da febre amarela. Seria assim o papel de nossa polícia? Tristes tempos...

O Filho de Maria

Paulo José Cunha

Era casado com Maria e se chamava José. Apresentou a identidade e conferiu o resultado: negativo. Não era o pai do filho que a esposa acabara de dar à luz. Rosnou qualquer coisa, dirigiu-se à saída, quando a atendente pediu-lhe que esperasse um pouco e falou pela aberturinha do guichê: "Não sei como lhe contar, meu senhor, mas outro dia apareceu por aqui um bêbado insistindo para colhermos seu sangue. Para nos livrar dele colhemos uma amostra. Ele sumiu, sem se identificar. O sangue do menino não bate com o seu, mas o computador diz que bate com o do bêbado. Nunca vou me esquecer, era engraçado. Ele repetia o tempo todo: "Eu sou Deus, sou Deus! Mas ninguém acredita".
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Paulo José, piauinauta candango, compare mais uma vez com um conto mínimo. DIVINO! Ninguém acredita...

Impressões sobre "Caçadores de Prosódias"

Geraldo Borges


Expresso-me nesta pequena crônica, não como um simples leitor, não como critico literário. Mas, sem pedir desculpa pela minha falta de modéstia, acrescento que tenho uma longa experiência de leitura de prosa e poesia, sei distinguir um texto valioso de um texto ordinário, traduzindo: tenho bom gosto. Alguém perguntará. Para que todo este intróito? Explico. Simplesmente para falar a respeito do livro – Impressões sobre os “Caçadores de Prosódia” do poeta Durvalino Filho.

Recebi-o de sua mão no ano de 2000, quando estive em Teresina, com seu autografo. Estranho livro.. Não tem orelhas, mas é um livro atento, não tem uma apresentação, quero dizer, uma apresentação do editor, ou de um critico literário. O livro por si dispensa apresentação. Talvez o poeta tenha dispensado esse procedimento editorial. O leitor vai direto ao livro. Não passa por porteiras. Não entra influenciado por opinião de ninguém.

Publicar poesia em uma província como Teresina, principalmente no século passado era uma temeridade, embora a capital do Piauí esteja sempre cheia de poetas, mas cada qual dentro de sua igreja. Mesmo assim uma coisa que me deixou admirado em seu livro é que ele chegou a segunda edição, o que quer dizer que foi lido. Coisa rara para quem publica poesia no Piauí A edição que eu tenho é a segunda de 1995.

Descobri que ler o poeta Durvalino Filho é fazer uma viagem pela intertextualidade da literatura brasileira, não só brasileira E, muito embora, Durvalino tenha escolhido Teresina para morar, viajou e morou em outras capitais do Brasil E teve alhures experiências; o seu livro não reflete um poeta provinciano. Sua poesia espelha um período de transição cultural dos ásperos tempos, que nossa geração teve de enfrentar; e, para isto, teve de mudar de linguagem, criando metáforas bizarras. Como se pode conferir, o seu livro é o resultado de sua experiência política – cultural, exercida, e compartilhada ao lado de seus companheiros, que redigiram o jornal “O Gramma”, veiculo de comunicação que marcou o rumo de um grupo de jovens que se manifestaram culturalmente contra o regime militar.

Se formos prestar nítida atenção nos detalhes, nas entrelinhas dos seus versos, sua obra é um leque aberto, e abarca escolas da nossa literatura, desde o barroco passando pelo modernismo, até mesmo, chegando ao concretismo, como se num fôlego só procurasse abarcar todas as nossas expressões literárias; E, como eu falei no começo, dado aos meus séculos de leitura, vejo que Durvalino também leu muito e aprendeu com poetas tais como: Camões, Gregório de Matos, Fernando Pessoa, Lorca, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Drummond, Sá Carneiro, Torquato, Mario Faustino, e mais. O poeta é também letrista, habilidade afluente de alguns poetas. Não é toda poesia que se encaixa em notas musicais.

Na verdade, o livro de poesia do Durvalino, é composto de vários livros, com subtítulos. A vantagem e que você pode abri-lo em qualquer página e se deleitar; isto é o que é bom na poesia. Mas para terminar as minhas leves impressões sobre a leitura de “Os Caçadores de Prosódia” acabo de abrir o livro na página 195. E movido de grande interesse começo a ler a poesia LET’ POETRY, oferecida a Drummond, Torquato e Faustino(in memorian) A poesia ter relevo para ser transcrita.

também conheço um anjo
de rara envergadura
anjo também louco
anjo com sexo de anjo
arcanjo de asa dura

um ser de ouvido mouco
ao tanger real do meu banjo
e ao clamor sem fim do corpo

anjo cruel
que me avisa
com sua asa de ouropel

vai duda
não liga se a morte
é carrocel
vai ser boing na vida.

Se o leitor possui o livro do poeta, parabéns, se não, vá atrás, entre em contato com um dos maiores poetas piauiense, contemporâneo. É ler e conferir.

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Geraldo Borges, piauinauta pantaneiro, ataca de crítico literário. Pra quem duvida, é ler e conferir: logo aí embaixo tem Durvalino.

Puxempur

Durvalino Couto

( O poeta Durvalino Filho em magistral poema: cuidado com as portas de vidro! Atire a primeira pedra quem quem nunca puxou o empurre neste trocadilho lingüístico que o cérebro custa a entender...)

Mais um poema do próximo livro: Big Sentido. Aqui em primeira mão.


Brinquedo Novo

Edmar Oliveira

Para escrever estas primeiras palavras gastei muito tempo. Primeiro o aprendizado com a máquina e os novos instrumentos. Mais difícil que amansar burro brabo no sertão. Se você não entendeu a comparação, faço outra ao seu alcance: mais difícil do que fazer carioca deitar numa rede. Quem já assistiu à cena inusitada não esquece. Tava eu meio assim enrolado com o brinquedo novo. E não conseguia fazer grandes avanços, apesar de me considerar um velho do século passado que conseguiu se adaptar às novidades da informática sem brigar com ela. Mas confesso que vez por outra o aperreio é grande. As coisas mudam numa velocidade maior que a minha capacidade de adaptação. O mouse do novo brinquedo não foi tão difícil de aprender. É suave como passar a mão na pele macia de uma moça. Acho que este é uma computadora, como se diz em espanhol. É muito arisca, temperamental, as teclas ssssssssão tão rápidas que se demorar o dedo onde não deve ela se repeteeeeeeeeee como a gritar. A tela brilha mais que olho de gazela na noite escura. E os documentos, como este que escrevo, são estreitos, meio enviesados ou oblíquos, como os olhos de Capitu. Mas eu tendo a me acostumar com conquistas difíceis. Fico atocaiando até o rendimento final, aí já não interessando se é por cansaço, costume ou paixão tardia. Tendo a entender a letra C por pura vaidade e auto-estima. O som que ela faz é de um agudo muito irritante. Sabe aquela moça bonita da voz chata? Mas a gente pode baixar ou desligar o som, o que se traduz em grande vantagem. O silêncio dela é eloqüente e o barulho do teclado, no silêncio, lembra a matraca das teclas da minha velha máquina de escrever e sinto a saudade do passado, quando aquela era uma máquina nova, bonita, elegante e a última invenção da tecnologia analógica do século passado. Quase como se fosse a lembrança da beleza juvenil daquela primeira professora, que hoje é bem mais velha do que eu e que prefiro a lembrança da beleza na memória. Viram como sei encher de nostalgia a memória de minha computadora moderna? E ela tem memória pra dar e vender no seu disco rígido. Não é esse seu problema. O problema nem é seu, pensei. Acontece que nesse mundo moderno tudo tem que estar ligado na tomada. Em noite de temporal nem me atrevo a chamá-la para me consolar com o rabo preso na tomada. Veio com uma bateria, mas que, que nem a de celular, desliga no meio de uma conversa e deixa você falando sozinh...

1000ton

Minton Faria, o 1000ton, arquiteto, poeta visual, desenhista, cartunista, comparece mais uma vez no Piauinauta. Minton, apaixonado por ferrovias, foi funcionário da Rede Ferroviária Federal, afastado na privativação das linhas do trem. O trem de linhas que hoje traça na prancheta mostra o trem bão que ganhamos no seu talento...




JegueCard

Minha viagem fantástica com um CARTÃO CORPORATIVO

Chico Salles


Acordei hoje bem cedo
Num lugar bem diferente
Depois daquela viagem
Pelo meu inconsciente
Foi sonho tão danado
Que ate fiquei cansado
E tonto completamente.

Era um lugar bacana
O povo todo arrumado
Tinha festa todo dia
Bate papo animado
Na chegada um assessor
Foi dizendo “professor”
Você já foi premiado.

Aqui não se tem miséria
Tudo é bom e positivo
Pode ficar à vontade
E também contemplativo
Está aqui, seu presente
Dado pelo presidente
Seu Cartão Corporativo.

Com ele, daqui pra frente
Você ficará calçado
Pode comprar qualquer coisa
Ate namoro acabado
No fim do mês a fatura
Vai alguém e te procura
O valor será quitado.

Dai eu pensei comigo
Já sei o que vou fazer
Pago a conta da bodega
Antes de ir pro o lazer
Compro flores, chocolate,
Jóias de muito quilate,
E novo cordel vou dizer.

Pincel, panela e pandeiro
Bozó, trator e charuto,
Tapioca, periquito,
Passagem, tarifa e tributo,
E vou lhe dizer outra cousa
Vou mandar fazer lá em Sousa
Uma praça com viaduto.

Vou comprar antecipado,
E quero ficar na torcida,
O ingresso para o show
Do sonho da minha vida
Os filhos do Xororó
Que será em Mossoró,
A milésima despedida.

Compro também sabonete,
Parafuso e alpercata,
Estepe e batata frita
Terno de linho e gravata
Como não sou de agito
Vou passear no Egito
E ser campeão de regata.

Quero velejar de trem
Pescar bacalhau em açude
Escrever para o teatro
Cuidar de minha saúde
Botar botox na venta
Quero chegar nos oitenta
Com cara de juventude.

Agora vou levantar
Vou mudar de posição
Cair na realidade
Da nossa população
Que todo dia acorda
Com o pescoço na corda
Buscando uma solução.

Não dá nem mais pra sonhar
É somente pesadelo
Enquanto lá em Brasília
A turma do desmantelo
Faz festa diariamente
Zombando da nossa gente
Sem nem mais guardar segredo.

Quando “será que será”?
Aqui plagiando o Chico
Que nosso Brasil terá jeito,
Tanto pobre e pouco rico
Nossa reforma agrária
Juntou-se com a malária,
E estão dentro do penico.

Com meu JegueCard eu fico.
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Chico Salles, astronauta paraibano de Sousa, um sousanauta, comparece no espaço com o cordel “JequeCard”, ainda inédito. Chico é um cordelista de “mão-cheia”, tendo escrito, entre outros: “Manel Xicote”, “Matuto Apaixonado”, “Salim, Jacó e Joaquim”,”Pai do Vento”, “Lima Barreto”, “O Maior Inimigo do Cachorro”. Para o centenário da morte de Machado de Assis, prepara um cordel monumental. Como cantor e compositor está no quarto CD: “Ta no Sangue e no Suor”, elogiado pela crítica. Contém sambas "de raiz" e forró “pé de serra” de altíssima qualidade, que o Piauinauta recomenda. Maiores informações:
www.chicosalles.com.br.

Conversa de Velhos

Cinéas Santos

Em Teresina, até as pedras sabem da minha aversão a telefone celular. É coisa antiga. Não se trata, como pensam alguns, de simples capricho de velho rabugento. É que existe entre mim o esse brinquedo do cão um fosso intransponível, uma incompatibilidade insanável. O celular “sabe” que não o aprecio; em represália, nunca me serve quando a ele recorro. O jogo não sai do zero a zero. No mês passado, de Pio IX, passei uma tarde inteira tentando uma ligação para Teresina. Nada. No display da caixinha mágica, só a frase inigmática: “buscando rede”. Lá pelas tantas, perdi a paciência: fui ao mercado da cidade, comprei uma rede de embira de caruá e deixei o bicho madornando nela a noite inteira. Vai ter preguiça assim lá na casa do capiroto, diacho!

Tenho miríades de razões para não gostar de celular. Em primeiro lugar, esse trem vicia mais do que coca-cola e nicotina, juntas. Em segundo lugar, como confiar num artefato que é capaz de perturbar a complexa ecologia de um Boing? Não bastasse isso, as operadoras estão sempre oferecendo uma carrada de “vantagens” para você mudar de plano, trocar o aparelho, etc. É pior do que casamento com viúva pobre carregada de filhos.

Ao longo da vida, sempre me neguei peremptoriamente a portar esse guizo eletrônico. Tinha pronto, na ponta da língua, um argumento irrefutável: não sou cardiologista, nem delegado de polícia, nem corretor. Quando não estou é porque não quero ser encontrado. Mas a vida tem curvas. Vai que meu filho, no dia dos pais, resolveu fazer-me um “carinho” e pendurou o chocalho da aldeia global no meu pescoço. Me deu um celularzinho peba, desses de cartão, que não mandam e-mail, não fotografam, não fazem mapa astral. Só acidentalmente, o meu completa uma chamada. Pronto: foi o bastante para desassossegar a minha vida. Na semana passada, por exemplo, uma velha amiga me ligou do Rio de Janeiro para uma consulta rápida: queria saber se, em determinado contexto, devia usar este ou esse. É pouco? Acrescente-se a isso a gozação dos amigos. Ontem mesmo, a jornalista Isabel Cardoso ligou apenas para confirmar se “o dinossauro estava realmente online”, sorriu e desligou. Mas o melhor, digo, o pior ainda estava por vir.
Na semana passada, em plena sessão do Conselho de Cultura, o bicho estrebuchou (o meu é mudo) no meu bolso. Não atendi. Terminada a sessão, dirigi-me à Oficina da Palavra onde tinha compromisso agendando com o mestre Santana. Muito bem acompanhado (uma mulher bonita ao lado), Santana recebeu com a elegância que o caracteriza: “Como vai o nobre amigo?”. Lembrei-me da chamada e resolvi retornar a ligação, cujo autor não consegui identificar. Deu-se então uma cena que nem Woody Allen, sem seus melhores momentos, seria capaz de imaginar.
-Alô!
- Quem fala?
- Companheiro, estou apenas retornando uma ligação...
- Não sei do que se trata.
- Meu senhor, quem está falando é o professor Cineas. É que ...
- O Cineas está aqui ao meu lado, você quer falar com ele?

Nessa altura do campeonato, a jovem e bela cidadã, que a tudo assistira, não conseguiu conter: desmanchou-se em gargalhada. Eu estava falando ao telefone justamente com o Santana, ao meu lado. Olhamo-nos envergonhados, desligamos nossos brinquedos inúteis e fomos tomar um cafezinho. Para disfarçar,passamos a discutir o calvário do Flamengo no brasileirão. Acreditai, irmãos, envelhecer dói!

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Esta crônica já é velha. Mas os velhos repetem os assuntos toda hora. Mestre Cinéas comparece no espaço sideral mais uma vez. E de forma magistral...

Um Trem pra Teresina

Renato Piau

Renato Piau d' "Os Brasinhas", conjunto dos primeiros cabeludos de Teresina. Para quem não lembra ou não é do planeta, o cara é o mesmo guitarrista número 1 de Sérgio Sampaio, Tim Maia e Luiz Melodia. Esse trem pra Teresina é uma bela canção do seu disco "Guitarras Brasileiras n° 2". Aqui recomendado. Piau é o cara! Sejai ouvidos...



Cícero Mafuá

Este é o Mafuá do Cícero. No Mercado do Mafuá, em Teresina, tem uma loja completamente diferente. O armarinho S. Franscisco virou o espaço cultural S. Franscico. Círero, filho da antiga dona da birosca, preservou o lugar, a mãe, o santo. E neste espaço sagrado acontece as vernissagens mais intereantes. Na manhã da cidade, sevindo café preto e bolo frito, você pode apreciar os artistas locais e de longe. Viva ele. Viva Cícero Mafuá...
Entre no Espaço Cultural São Francisco


Cartas pra Redação

Recebi esta longa missiva de Aderval Borges, que entrou em contato com o Piauinauta, reproduzida abaixo:

Pia aí, pia aqui e em qualquer parte

O Piauí está na minha vida desde moleque, no interior paulista, lá pela segunda metade dos anos 60, quando comecei a ficar cada vez menos coerente com o que minha modesta família pretendia de mim. Nessa época ainda morava em São José do Rio Preto. Embora paulistas caipiras, eu e meus amigos nos ligávamos mais nas coisas que rolavam em outro Rio, o de Janeiro. Paulo Francis, Sérgio Augusto e o gaúcho Tarso de Castro, da primeira leva que inventou o Pasquim, eram nossos termômetros. Da chamada grande imprensa, um dos que líamos com atenção era o piauiense Castelinho, cuja coluna era publicada em jornais do Rio e de São Paulo. Também já conhecia O Homem e Sua Hora, do Faustino, por intermédio de dois primos mais velhos que a ditadura matou.

Veio o tropicalismo e nos ligamos muito nas canções daqueles cabeludos cheios de colares e cores, cafonas como nós, do interior, sem senso de ridículo como nós, procurando se superar, aparecendo para as elites das grandes capitais com um repertório no mínimo diferenciado. As letras de Torquato, em especial, exprimiam o sentimento de orfandade do migrante tímido e sensível, às vezes imodesto (quero voar num Concorde / tomar o vento num assalto...). Nos tocava fundo a mala malcheirosa do Caetano no dia em que ele foi embora de Santo Amaro pra capital e coisas do tipo.

Nossa condição, em São José, não era muito diferente da de qualquer nordestino. O noroeste era a região mais pobre do interior paulista. Só perdia para o Vale do Ribeira, onde o Lamarca fazia, na época, seu estágio para o fracassado sonho de uma guerrilha rural. Como muitos piauienses, baianos, cearenses, alagoanos e nordestinos de outros estados, também tivemos de deixar nosso interiorzão atrasado, com uma mão na frente e outra atrás, para tentar alguma coisa no eixo Rio-São Paulo. Na época, nosso conterrâneo Paulo Moura fazia tímidas aparições como músico de fundo dos astros dos festivais.

Veio a Navelouca. Cada um da minha turma, ainda em São José, tinha a sua. Aquela publicação atípica era nossa bandeira, uma espécie de identidade. Guardo a minha até hoje, toda despedaçada, faltando algumas páginas, mais viva do que nunca. Já a exibi às minhas duas filhas, para explicar o quanto aquelas folhas soltas da agora "navepouca" foram importantes para minha geração.

Fiz percurso diferente da minha turma, que foi toda para Rio/São Paulo: rumei para Brasília, onde conheci dois dos meus principais amigos pra vida toda, Duda (é assim como chamamos Durvalino) e Arão, ambos da terrinha. Enfim, quando vejo/ouço algo sobre o Piauí, fico ligado, como se fosse minha própria terra, embora só tenha aparecido em Teresina há mais de 20 anos, ainda assim rapidamente, a trabalho. As imagens da capital que tenho na memória em nada condizem com os prédios, os condomínios e outras merrecas do desenvolvimento atual. Teresina é mais ou menos do mesmo tamanho da minha São José. Ambas estão virando cidades grandes, como todos os conhecidos benefícios e malefícios.

Após umas tantas andanças, vivo atualmente indo e vindo a São Paulo, onde trabalho. Moro em Campinas. Devoto minha vida à literatura, pela qual venho queimando energia há décadas, e a um sítio, na divisa do estado com o Triangula Mineiro, onde planto seringueiras também há décadas. Sampa é uma cidade a cada dia mais feia e sem encantos. Se nada mudar nos meios de transporte e no trânsito, daqui alguns anos só nos locomoveremos por aqui a pé ou de helicóptero.

Os nordestinos das primeiras levas que para cá vieram foram totalmente incorporados; são mais paulistanos que eu. Os que migraram nas últimas décadas não vêm se dando tão bem assim. Muitos têm batido de volta para seus estados, mas levam a experiência – bem ou mal-sucedida – dos anos na megalópole e certamente vão aproveitá-la para colaborar com o desenvolvimento em curso nos estados do Nordeste.

No momento, Sampa vem recebendo grandes contingentes de imigrantes do terceiro-mundo. O que baixa de bolivianos, senegaleses, nigerianos e quenianos por aqui não é mole. Bolivianos, todos com cara de bugres andinos, são quase escravos de negócios informais montados na capital por outros migrantes latino-americanos que chegaram antes deles. Alguns eram militantes de esquerda que aqui se exilaram, tiveram apoio da Igreja, da Anistia Internacional, o caralho a quatro e acabaram virando empresários. Os atuais imigrantes sequer têm documentos.

Em certos trechos do centro da cidade parece que estamos numa capital africana. Só se vê negrões lustrosos – preto no Brasil não existe mais, pois a negrada daqui há muito que se amulatou – e só se ouve dialetos. Os extermínios étnicos dirigidos por mafiosos tribais já chegaram por aqui. Volta e meia um queniano é encontrado morto. A polícia vai até a pensão onde o cara mora e, como já dizia Geraldo Pereira, "ninguém sabe de nada".

Quanto a essa coisa toda de ser piauiense, sob aquele velho estereótipo de que se trata do estado mais atrasado do país, acho que já não cola. Pelo que noto, o Piauí tem vocação para deslanchar, isso se o capitalismo gafanhoto e a velha corrupção forem superados. Cabeças para isso tem de sobra. Esse sentimento de rejeição, que muitos piauienses ainda sentem, não é muito diferente da condição dos caipiras paulistanos, fluminenses, mineiros e de outros estados. No nosso caso, Sampa está pouco se lixando para quem é do interior paulista. Só valemos alguma coisa quando computado o PIB. De resto, só servimos para caricaturas grotescas de novelões e filmescos nacionais, assim como esse povo heterogêneo indiscriminadamente denominado pela indústria cultural como "nordestino". Veja só o capirês falado pelo Zé Dirceu – não conheço nenhum caipira de verdade que fale como ele.

Enfim, a labuta dos caipiras para conquistar espaço é igualzinha a dos paianautas e outros nautas nordestinos. Mas o mundo está em franca mudança. Há, ainda, alguma centralização cultural no eixo Rio/São Paulo. Em Brasília, nos idos anos 70, eu, Duda, Pedro Anísio, Arão e outros já prevíamos que essa merda toda iria implodir um dia. Os meios de produção estão levando a isso. A hegemonia dos grandes veículos está acabando. Ou seja, não temos mais de pensar em produzir coisas pro Brasil – ou seja, que agrade as duas grandes capitais –, temos, sim, de ter nossos olhares voltados para o mundo.

O que o tropicalismo queria está cada vez mais aí, sem grandes contestações. Uma jovem cantora inglesa tenta em vão conquistar seu espaço em Londres, não consegue, bota seu som no My Space e é convocada, por e-mail, para cantar It's long way no filme brasileiro Meu Nome é Johnny. Este é apenas um pequeno exemplo do que está rolando.

Para mostrarmos a que viemos, não tem choro: temos de batalhar com ousadia e competência. E sem essa de exotismo. A era de botar aqueles penduricalhos do tropicalismo nos pescoços já passou. Chega de tocar pandeiro para a elite carioca e paulista sambar. Precisamos fazer as coisas cada vez com mais eficiência e criatividade, isso sim. Danem-se os conceitos e preconceitos de Rio e São Paulo. E dane-se, igualmente, a picaretagem cartorial da velha política paternalista do governo federal.

Temos de pensar em ir longe, a exemplo do Faustino que veio ao Rio mostrar pros bobalhões metropolitanos que a poesia de vanguarda é do caralho, do Torquato e sua militância cultural pós-tropicalista à margem da margem, do interiorano Rimbaud que deu um nó nas vanguardas de Paris, do jacu Dylan que pôs a música popular americana de ponta-cabeça em Nova York e tantos outros. Não temos de ficar só em meio à nossa corriola não. Temos de mostrar ao senso comum – sempre um tanto leso ou, no mínimo, lento – o que os piaunautas e outros nautas são capazes. Ferro no cu dessa gente sossegada. Se não quiserem nos aceitar como somos, tomemos nossas naves e zarpemos com nossas idéias e realizações pra galáxia globalizada.

Aderval Borges


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Um quizado por resposta:

Louvo a crítica de Aderval. Na pós-modernidade, segundo Zygmunt Bauman, os excluídos são rejeitos, que não mais encontrarão lugar no planeta, diferentes do “exército de reserva” da modernidade capitalista avaliada por Marx. Agora, quem sobra no mundo do consumo não cabe mais daí pra frente. Um rejeito dispensável que vai incomodar os consumidores da pós-modernidade. Deste modo, todos os que se sentem sobrantes no planeta são astronautas mantidos em órbita, alheios ao mundo que gira no ritmo do consumismo desenfreado. Estamos de acordo. Entretanto, resisto em manter minha nave mãe na minha aldeia. De lá quero perceber esta globalização escancarada que arrebenta os limites geográficos. Os limites que estabeleço são afetivos, saudosos e perdidos. Não são bairristas, nem balizadores da compreensão. Preciso de outras aldeias para resistir ao que se coloca como inevitável na construção de um sujeito psicótico (aberto aos nós do consumo), que parece chegando na substituição do sujeito neurótico do século passado. Dany-Robert Dufour aponta este sujeito dessimbolizado: “o sujeito ‘pós-moderno’, entregue a si mesmo, sem anterioridade nem finalidade, aberto apenas para o aqui-e-agora, conectando tão bem quanto mal as peças de sua pequena maquinaria desejante nos fluxos que a atravessam”.
É para não ser assim que o fio condutor com o passado de cada um pode reforçar os laços simbólicos na pós-modernidade em que mergulhamos. E por ser de lá, na certa por isso mesmo, como piauinauta, mantenho-me em órbita deste novo mundo. Mas todos os outros argonautas, desde Jasão, mar adentro desta ilusão faremos contato... (Edmar)
OBS. O livro do Dufour chama-se “A Arte de Reduzir as Cabeças” e é deveras interessante para o entendimento do agora. Assim como o do Bauman, chamado “Vidas Desperdiçadas”, muito bom também, apesar de parecer título de novela mexicana... (Edmar)


PS- E antes que me esqueça: pela beleza do texto de Aderval esta carta é um artigo. Espero outros, Sr. Piauinauta por parte de pai e mãe.


RARINDRA PRAKARSA









fotógrafo Indonésio, nascido em Jakarta, diz que seu país é um dos melhores locais do mundo para qualquer amante da fotografia por causa da impressionante beleza das milhares de ilhas de lá. A bem da verdade Rarindra fotografaria bem em qualquer local do mundo independente do motivo e do local.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

piauinauta

Na madrugada do fim do carnaval, na quarta feira, marginal do Poty, que já fede a Tietê, o Piauinauta foi visto no céu azul que se insinua...

De Águas Servis e Servidas

Edmar Oliveira

Todos os dias, quando faço minha caminhada matinal no bairro em que moro, sou surpreendido pelos lançamentos imobiliários que mudam a feição de Jacarepaguá. Bairro da zona oeste do Rio de Janeiro foi, até bem pouco tempo, local de sítios e chácaras com suas c
asas e calçadas largas. O recente "boom" da construção civil envia os problemas da cidade grande ao antigo pacato subúrbio. O trânsito caótico, buzinas e pessoas em movimento abavam os sons dos pássaros e polui o ar das montanhas que respirávamos no vale. E, se mudo o percurso do meu caminho, descubro a cada dia um novo prédio em construção no lugar daquela casa, daquele sítio. O progresso arranha o céu, destrói o curso das águas, incendeia as matas, revira a terra. Mas qualquer plano de aceleração de crescimento amiúda a métrica da poesia. Fazer o quê? A gente reclamava era da falta de emprego que agora chega.Tudo tem dois lados, pelo menos. João do Vale, o grande poeta maranhense, tem uma música contundente sobre o aperreio de Deus para atender dois sertanejos: a lavadeira pede sol pra secar a roupa; o lavrador chuva. Os dois com a mesma razão...

Mas voltemos ao progresso do meu bairro. Todo dia um prédio brota do chão com um "marketing" agressivo. Só que fiquei espantado com as promessas de consumo. Parecem, todos, a mesma proposta. Além dos nomes em inglês, academias e outros atrativos para não se sair de casa, todos, todos mesmos, prometem um parque de águas. Piscinas, cascatas, corredeiras, tobogãs e outras promessas de águas azuis estão estampadas nos painéis grandiosos, que encobrem o canteiro de obras onde os conterrâneos suam em bicas armando em cimento um sonho que não será vivido por eles.

Encasquetei com este motivo comercial. Venda de águas nos condomínios modernos! Parece ser uma boa estratégia, já que todos adotaram a mesma promessa. Mas tanta água para diversão num planeta em que ela já falta? Seria uma preocupação justa ou apenas trauma de nordestino que não suporta ver água desperdiçada? Não é apenas aquele velho comercial que prometia um apartamento com duas vagas na garagem e cinco na piscina. Vende-se agora um apartamento conjugado a um parque de águas condominial. A julgar pelos desenhos dos painéis e das maquetes ninguém precisará sair de casa para ir à praia. Em alguns parques até areia da praia está colocada. Meu queixo caiu. Pois lá em cima, no sertão, meu mundo caía quando não se tinha uma cacimba por perto.

Mas dizem que andar faz o pensamento desandar. (Talvez por isso, ou contra isso, os loucos são andarilhos insaciáveis). Na minha caminhada matinal, recurso nece
ssário para atenuar o sedentarismo contraído na modernidade, dano a pensar nessas coisas que depois sistematizo escrevendo (ou "escrevanizo" confundindo). E o pensamento desatina: em cada chácara ou cada sítio morava uma família com verde em volta e águas de curso normal a correr. Para cada prédio uma vasta área é desmatada, terra revolvida, cursos d'água alterados. Cinqüenta ou setenta famílias na vertical ocupam o espaço de uma família da casa horizontal. Os carros destas gentes são empilhados à noite para congestionar as ruas de manhã. E a "água servida" destas gentes serão suportadas nos esgotos antigos da outrora rarefeita malha habitacional do meu bairro? Fico imaginando se um dia estarei caminhando quando as descargas dos muitos banheiros coincidirem em um mesmo momento. Eu e os parques de águas azuis seremos afogados em merda quando os esgotos quebrarem o asfalto e a natureza expulsar nossos dejetos de suas entranhas? Confesso medo enquanto aperto o passo...


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fotos de celular de painéis de prédios em Jacarepaguá

Uma Livraria Moderna

Geraldo Borges

Entrei em um shopping. Tinha ido com minha mulher e meu filho fazer umas compras. Primeiro comprei uma luminária em uma loja do ramo. Ia servir para meu filho estudar de noite. Depois saímos para uma livraria a fim de comprar um dicionário de Inglês, e, eventualmente, algum romance que me chamasse a atenção. Quando entramos na livraria eu fui logo me apercebendo que não era uma livraria normal. Fiquei chocado. Pensei que estivesse pousando em outro planeta.


Lembrei-me que em minha cidade natal, que fica na linha do Equador, eu costumava freqüentar livrarias, que, naquele tempo, era uma casa cultural. A gente conhecia o dono, batia papo com ele, tomava café, conversava sobre os últimos lançamentos editorias. Os fregueses entravam lá sabendo que iam encontrar livros, apenas livros.

Ali onde eu estava, era tudo diferente. Os livros pareciam dizer: o que nós estamos fazendo aqui, no meio destas mercadorias tão estranhas, que não dizem nada, que não têm conteúdo. Não que as desclassifiquemos. Mas uma livraria tem que ter uma atmosfera própria, como um templo, uma biblioteca. Os livros pareciam humilhados, com as faces expostas no meio de outras mercadorias.

Está se vendo que não se trata de uma livraria tradicional; se eu fosse listar os tipos de mercadorias, exposta ali, encheria mais de uma resma de papel. Estava meio perdido no ambiente. Não me sentia realmente dentro de uma livraria. Comecei a ficar agoniado. Até que me deparei com um globo geográfico, bem grande, encaixado em uma armação de bronze, fácil de manusear.

Comecei a olhar o mundo para me distanciar da livraria. Vi os mares e os continentes. E não sei bem o porquê, olhado os EUA, o seu tamanho, a sua envergadura do Atlântico ao Pacifico, pensei com os meus botões: nós, que gostamos tanto de imitar os Estados Unidos, devíamos ter ido mais longe, chegado ao Pacifico. Hoje, toda a América Latina seria nossa, com exceção do México, as Guianas e o Caribe. Carlota Joaquina ainda tentou abocanhar o Uruguai. Agora é tarde. Estes pretensos pensamentos geopolíticos passaram rapidamente por minha cabeça. Eu estava meio atordoado dentro daquela livraria. Precisava sair dali. Com certeza, os vendedores não entendiam nada de livros. Quer dizer, se eu quisesse conversar sobre literatura não teria feedback. Se eu perguntasse para alguns deles se conheciam Kafka, se já tinham lido Kafka estaria cometendo um absurdo.
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Geraldo Borges, descobrindo, em pleno pantanal, que as livrarias já não são as mesmas. E eu estava lendo outro dia que vão lançar o e-paper, espécie de parafernália eletrônica flexível como papel, capaz de receber o jornal do dia ou o livro preferido, tudo eletrônico... (Edmar)

O Sertão Não Virou Mar

Cinéas Santos

Vez que outra, o sertão que ainda me habita reclama a presença do outro sertão, aquele que um dia habitei nos idos da infância. Quando isso acontece, não me resta outra saída a não ser desapracatar-me rumo ao Caracol, mesmo sabendo que, hoje, Campo Formoso não passa de uma expressão poética boiando no rio da memória. Seu Liberato, que não teve a intuição conspurcada pelos "saberes" da escola, sentenciava: "Com as primeiras águas, todos os viventes buscam o seu lugar de origem". Está explicado.

Na semana passada, voltei ao meu lugar de origem, ou melhor, ao que dele sobrou: uma capoeira infestada de carrapicho. Em São Raimundo Nonato, convoquei a irmã querida para a
inútil jornada ao passado. Como quem tenta montar as peças de um quebra-cabeça mágico, percorremos estradas, caminhos e carreiros à procura do inencontrável: os rastros da infância. De qualquer forma, fizemos boa colheita: "descobrimos" uma árvore bonita que não conhecíamos; visitamos duas tias velhas queridas, uma delas – Odete – foi quem inoculou em mim o vírus da poesia. De quebra, ainda reencontramos um primo tresmalhado (uma torrente de causos) que não víamos há meio século.

Ao contrário do que vaticinava nosso tio Conselheiro, o sertão não virou mar; diluiu-se para integrar-se definitivamente à aldeia global. Espectros de árvores mortas, as antenas parabólicas espetam o chão dos cercados. Nas saletas rústicas, em vez de oratórios, as telinhas azuis anunciam as alvíssaras do capitalismo mundializado, que acena com a felicidade eterna em módicas prestações mensais. Nas bodegas de beira de estrada, os sertanejos já não contam histórias de trancoso; discutem, com o mais vivo entusiasmo, o destino dos participantes do BBB - 2008. Motos barulhentas percorrem as trilhas que outrora pertenciam aos jegues. As únicas coisas que permanecem imutáveis são o sol e a escassez de chuvas. Ê sertão!

Em São Raimundo, apesar do carinho de dona Dezinha, me sinto um tantinho exilado: me faltam o café forte de D. Purcina, o abraço do Paredão, os
relaxos do Edison, o chamado do sino da capelinha da aldeia, a música dos chocalhos dos jegues dos catingueiros chegando para a feira... A Feira, aos sábados, era uma atração à parte, um universo rico e multicolorido, onde se misturavam o pregão do Zé Pança – Olha a besta gorda. Filas! – o som do cavaquinho troncho do Paizinho, a arenga do Raimundinho Graiada, o cheiro do bolo frito da Santa Preta, as imprecações do Marquinho, mais conhecido como Bode... Tudo isso se perdeu na poeira do tempo. São Raimundo, que ostenta, orgulhosamente, o título de "capital da pré-história", poderia, se quisesse, reivindicar para si o título de cidade mais barulhenta do universo: motos estrepitosas, carros de som e bandas de forró produzem aquilo que o Batista da Antônia chamava de "trabuzana dos infernos".

Encharcado de não-sertão, regressei à minha aldeia que, de cara lavada pelas primeiras chuvas, recebeu-me de braços abertos. Teresina, é por ti que erra meu coração cansado de inúteis embates. Tem razão o poeta medíocre: "A vida em teu seio é mais amena"...

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Mestre Cinéas, o irmão mais velho, embicou sua nave rumo ao fundo do sertão. E nesta crônica faz um encontro da memória com a globalização que habitou o sertão. Não virou mar, mas globalizou...

durvalino couto

Durvalino Couto, o poeta de "Caçadores de Prosódias", comparece no espaço sideral com esta Ampulheta temporal, poema do seu novo livro "Big Sentido". A imagem, cedida em primeira mão ao "Piauinauta", é como deverá sair no livro. Faz parte do poema o esforço da leitura no esmaecer do tempo. Mas você vai de cara e tenta ler as palavras, e sente, e entra, boca, estômago, cu da ampulheta... Caralho, Duda, você supera o poeta que eu conhecia...(Edmar)


Visita

p. j. cunha

Última Flor sabia que a hora se aproximava. Mas não se ouvia rumor, leve que fosse. Balançou-se apreensiva, com aquele jeito das flores se balançarem, quando ficam nervosas. Empalidecia a olhos vistos. Mas, vaidosa, cuidava-se. E com ajuda do vento afugentava insetos, sacudia as folhas secas ao chão e procurava manter-se com um mínimo de frescor, já que a beleza lhe fugia. Ele viria, tinha de vir, nem que fosse pela última vez.

Enrubesceu ao ouvir o ruflar que conhecia tão bem. Ele! A palidez sumiu. Estremeceu de gozo diante da elegância com que se aproximou, fazendo-lhe a corte. Como um mestre-sala, rodopiou a seu redor, antes de beijá-la. Ela adorava a ternura de seu beijo, durante o qual sugava-lhe o néctar. Emocionou-se, mas conteve-se. Não queria que a visse chorando. Cumprimentou-o e agradeceu a visita curvando suavemente o caule. Ele fez uma mesura de despedida e começou a se afastar, num vibrar de asas. Ela esperou que ele se distanciasse. Só quando teve certeza de que ele não perceberia, foi que deixou cair a primeira pétala.

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PJCunha. candango piaunauta do Planalto Central, em Conto Mínimo... EXelente!....

Filhos do Grande Irmão

Edmar Oliveira

Psicólogos, antropólogos, sociólogos e outros entendedores do comportamento humano, vêem mostrando preocupações com a geração criada sob intensa vigilância eletrônica. Não sei se vocês lembram, a parafernália começou com a "babá eletrônica", um transmissor de sons instalado no quarto das crianças que "avisava" aos pais de "alguma anormalidade" no habitat dos pirralhos. Hoje já são câmaras de vídeo para a vigilância pelo computador do local de trabalho dos "responsáveis" ou celulares com GPS que localiza por satélite onde está o vigiado. Só a comunicação por celular tornou-se insuficiente.

Artigos de especialistas apontam para o fato desta geração desenvolver mecanismos paranóides e esconder sentimentos e segredos que não possam ser visualizados por câmaras e satélites.

De certo que o mundo vem mudando de forma vertiginosa. Com implicações na formação de futuras gerações. Uma das características da pós-modernidade é a instalação de novos comportamentos que parecem ter existido desde sempre. Quem sabe escrever sem o computador? Como pode alguém viver sem celular? Quem mais revela filmes fotográficos? E as tragédias transmitidas em tempo real para a casa de cada um? Claro que tem ainda muitos resistentes, e conheço vários, que se recusam a entrar no século XXI. Mas apesar do admirável esforço destes "dinossauros", que estão em profunda coerência com um modo de vida saudável aos costumes de antes, eles são animais em extinção. Mas admiro encontrar um deles e gastar memoráveis minutos em prosa sobre um passado de que tenho saudade. No meu modo de ser, entro na pós-modernidade de forma desconfiada. È o máximo de resistência que exerço. Sei que não tenho mais idade para desenvolver mecanismos paranóides e desconfianças que abalem minha saúde mental. Depois que a gente dobra o cabo da "boa esperança", a calmaria nos leva à velhice. Pelo menos creio nisto. Mas as crenças não são reconhecidas na pós-modernidade, a não ser se explicadas pela ciência, da qual estou farto...

E na minha desconfiança com os inventos tecnológicos pós-modernos, gosto de comparar comportamentos de antes com os de hoje. Na copa de 70, assisti no Piauí a uma transmissão de chuviscos da TV do Ceará. Tinha que ter um rádio ligado para entender melhor o que achávamos que eram imagens de TV. Também nunca vou me esquecer que os aviões, comandados por Osama Bin Ladem, derrubaram as torres gêmeas em tempo real dentro da minha casa em imagens digital. Criei meus filhos sem ter linhas telefônicas, que eram uma raridade, e caríssimas, na década de 80, mesmo no Rio de Janeiro. Usava um orelhão instalado no meu prédio para falar com a escola deles e meu trabalho. Hoje estranhamos quando um filho não atende o celular e o nosso telefone móvel nos torna escravos, em tempo integral, de nossos patrões. Tinha uma máquina de escrever na década de 80, "eletrônica", que conseguia apagar até cerca de vinte caracteres num texto. Invenção fenomenal pra quem sempre usou uma máquina manual. Pra mim, os processadores de textos atuais, nos computadores, são a extrema sofisticação da tecnologia moderna.

Sei que estou na transição de comportamentos e costumes, verdadeiro conflito de gerações. Lembro que meu avô dizia que o mundo sempre se preparava para a nova geração, e que um dia eu entenderia o que ele estava falando. Acho que chegou este momento. Não consigo me sentir seguro como a maioria das pessoas que lêem o cartaz: "sorria, você está sendo filmado". Me sinto "pagando um mico" ou vítima de uma vigilância desnecessária. Não consigo compreender o futuro dos filhos do grande irmão
.

h dobal



Em 1978, a Corisco Editora, aventura encantada do mestre Cinéas, publicava, em parceria com a Universidade Federal do Piauí, um grande livro do H. Dobal: “Serra das Confusões”, em que, em poesia contava “causos” da nossa gente. Os personagens eram imaginados por um cartunista ainda imberbe, chamado Albert Piauí, que ilustrou todo o livro. A reprodução que faço aqui perde por ser tirada do livro com minha digital. Mas aí vai.

A primeira que seleciono para dividir com vocês é esta da Maria Piauí, por grande laço afetivo com a retratada. Na minha infância morei em Codó, no Maranhão, onde a feiticeira local era a Maria Piauí. Diziam que até José Sarney, um jovem coronel maranhense, era freguês. E nós, os meninos, éramos assustados pelo poder que tinha a Maria Piauí. Nunca a vi. Tinha muito medo. Mas com certeza se parece com a caricatura do Albert. O grande Dobal a retrata como de fato era:


Maria Piauí


Convocava os poderes
que os outros não tinham.
Benzia com rezas
que ninguém sabia.
Fechava os corpos
abria as almas
e enganava
os desenganados.

rubens gerchman
















A espaçonave de Rubens Gerchman desapareceu no espaço na terça feira, justo uma semana antes da terça gorda do carnaval.
Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio, (1966) foi obra de grande importância nas artes brasileiras e aqui homenageia o artista. Este quadro esteve na exposição "Tropicália", que aconteceu no MAM, no final do ano passado. Caetano reverencia a obra em letra do disco Tropicália (1968). A voz era da Nara. Quem viveu lembra.

Lindonéia


Caetano Veloso/Gilberto Gil


Na frente do espelho

Sem que ninguém a visse

MissLinda, feia

Lindonéia desaparecida


Despedaçados

Atropelados

Cachorros mortos nas ruas

Policiais vigiando

O sol batendo nas frutas

Sangrando

Oh, meu amor

A solidão vai me matar de dor


Lindonéia, cor parda

Fruta na feira

Lindonéia solteira

Lindonéia, domingo

Segunda-feira

Lindonéia desaparecida

Na igreja, no andor

Lindonéia desaparecida

Na preguiça, no progresso

Lindonéia desaparecida

Nas paradas de sucesso

Ah, meu amor

A solidão vai me matar de dor


No avesso do espelho

Mas desaparecida

Ela aparece na fotografia

Do outro lado da vida

Despedaçados, atropelados

Cachorros mortos nas ruas

Policiais vigiando

O sol batendo nas frutas

Sangrando

Oh, meu amor

A solidão vai me matar de dor

Vai me matar

Vai me matar de dor

alice ruiz

Achei esta feliz sacada da cidadã curitibana, poetiza Alice Ruiz, que deve saber do que está falando. Lembrei, que, há muito tempo, fui repreendido por uma autoridade, naquela cidade, simplesmente porque estava muito alegre. Além da conta. Como falta de educação na observação de Ruiz. A ilustração é do também paranaense Solda e foi pinçado do blog de Albert Piauí. (Edmar)


pablo

Este "Cartão-Poema" é criação de Pablo das Oliveiras para a editora virtual Poesia Presente. Pablo trabalha com crianças no Núcleo de Artes da Secretaria de Educação, no Engenho de Dentro, Rio. O Piauinauta reconheceu no balançar das persianas da folha do coqueiro um ruído conhecido...